sexta-feira, 21 de julho de 2017

Carrinhas, listas e cacicagem. Todos os detalhes da guerra pelo poder no PSD/Lisboa

Vitor Matos, Pedro Jorge Castro e MIguel Pinheiro
20 Julho 2017
Militantes que nunca pagaram quotas e votaram sem saber em quem. Carrinhas a descarregar eleitores à porta do hotel. As tácticas dos caciques. E as manobras das fações rivais na guerra pelo PSD/Lisboa


1 - As carrinhas que levavam e traziam militantes


A história de como uma carrinha Toyota verde aparece a transportar militantes para votarem nas eleições internas do PSD/Lisboa é um retrato quase perfeito do caciquismo que controla os partidos. A carrinha está registada em nome de uma empresa de eletricidade e telecomunicações de Famões. O gerente da empresa é militante do PSD, mas nem foi votar neste dia e remeteu explicações para o irmão, Bruno Carneiro.

Bruno Carneiro foi votar, mas não na carrinha verde da sua empresa. Contou ao Observador que foi abordado há um ano por um amigo e vizinho, que lhe pediu para ser militante do PSD: “Disse que só tinha de preencher um papel e assinar. E que não tinha de pagar as quotas, porque alguém tratava disso”. Bruno Carneiro até aprecia a ideologia do PSD, mas não podia ser mais indiferente às guerras internas do partido. Mesmo assim, e uma vez que não teria custos, ajudou o amigo e inscreveu também como militantes a sua mulher, a sua mãe e o seu irmão.

Dias antes destas eleições no PSD/Lisboa, que se realizaram no Hotel Sana a 1 de julho, um sábado, ao fim da tarde e noite, o amigo perguntou a Bruno Carneiro se lhe emprestava a carrinha da empresa, uma Toyota Hiace verde com nove lugares, porque ia precisar de transportar umas pessoas. “Como era fim de semana e não ia precisar da carrinha, emprestei”, justifica. Não lhe pediram só a carrinha. Através desse amigo, uma pessoa que não conhece abordou-o também para ir votar. “É tudo uma máfia. Eu nem sei em quem votei. Foi por indicação. Pediram-me para votar e eu fui lá”.


Foi lá, ao Hotel Sana, acompanhado pela mulher e pela mãe pelas 21h. Encontrou o amigo à porta do hotel com a carrinha, entrou no hall e foi logo abordado por uma pessoa desconhecida que lhe perguntou se ia votar na lista A, de Pedro Pinto. Bruno Carneiro respondeu que ia ter com outra pessoa. “Chegou essa outra pessoa que sabia que eu ia lá estar a essa hora. Foram ter comigo à porta principal, para me indicarem a mesa de voto. No elevador, disseram-me onde devia votar”. Foi um homem mais velho, que não conseguiu identificar. Ficou com a ideia de que lhe indicaram uma lista — a J ou a L, diz ao Observador. Mas J não havia. E a L era a lista de Nuno Morais Sarmento, promovida pela fação de Rodrigo Gonçalves, um dos maiores caciques do PSD em Lisboa, que controla indiretamente 600 a 800 votos.

Mas Bruno Carneiro diz que nem conhece estas pessoas. E não é o único, pelo que percebeu quando foi ao Hotel Sana: “Sou bom observador e, pelo tipo de pessoas e pelo tipo de reacção que tinham, pareciam-me quase todas deslocadas do ambiente. Estavam ali quase todas da mesma forma que eu estive: não têm nada a ver com aquilo”.

Esta carrinha Toyota Hiace foi emprestada por um militante que foi votar na Lista L de Rodrigo Gonçalves, e só foi informado do sentido de voto no elevador do hotel

Bruno Carneiro deu ao Observador o contacto do amigo a quem emprestou a carrinha, André Cabral. Mas foi o próprio militante condutor quem contactou o jornalista do Observador logo a seguir por telemóvel, depois de ter sido avisado.

À pergunta sobre a quantidade de pessoas que tinha transportado na carrinha verde, André Cabral respondeu: “Cinco”. Informado de que o Observador tinha imagens suas a transportar muito mais pessoas, admitiu que tinha ido buscar mais alguns militantes ao metropolitano, a várias estações.

Que militantes? Conhecia-os? Como é que eles o identificavam? “Através de uma app. Quem queria boleia inscrevia-se”. Esta resposta é, no mínimo, surpreendente. Ninguém mais confirmou ao Observador a existência de qualquer aplicação para transportar os militantes às eleições do PSD – e seria até algo bizarro. Como é que se chamava a app? “Não vou dizer, foi criada só para aquele dia, foi revelada aos militantes e foi desactivada no dia seguinte.

André Cabral afirma que não conhecia os militantes que transportou, mas garante que trabalhou por altruísmo: “Foi um serviço à comunidade, para ajudar as pessoas. Entravam independentemente da lista em que votavam. Quis prestar este serviço em voluntariado, para ajudar as pessoas e defender o PSD”. Não quis dizer que lista apoiou: “O voto é secreto”.

André Cabral também começou por rejeitar qualquer pagamento das quotas de outros militantes, fazendo a comparação com os sócios dos clubes de futebol. Confrontado pelo Observador com as afirmações do amigo que lhe emprestou a carrinha, e que recordou que lhe disseram que alguém pagaria as suas quotas, mudou a versão: “Se calhar, como ele me emprestou a carrinha, paguei as quotas por ele, em vez de ele me cobrar”.

Pagamento massivos de quotas e transporte de militantes que não iriam votar espontaneamente são duas das práticas habitualmente associadas aos caciques mais empenhados nas ferozes lutas de poder dentro dos partidos. Mas, naquela tarde de 1 de julho em que o PSD/Lisboa foi a votos, não havia provavelmente família mais simpática em todo o Hotel Sana, hóspedes incluídos, do que a família Gonçalves.

O pai, Daniel Gonçalves, presidente da Junta de Freguesia das Avenidas Novas, fazia lembrar um mordomo refinado à porta do hotel onde funcionavam as urnas de voto, na Avenida Fontes Pereira de Melo. Com o seu blazer azul-claro, cumprimentava com simpatia centenas de votantes à entrada e agradecia-lhes a participação na votação à saída. Muitos deles chegavam em carrinhas conduzidas por homens da sua confiança — identificados pelo Observador — que fizeram diversas viagens ao longo do dia para “descarregarem” os militantes com estas instruções: votar na Lista L no papelinho azul e votar em branco nos outros quatro boletins de voto de outras cores.

Daniel Gonçalves, pai de Rodrigo Gonçalves, passou seis horas a cumprimentar os militantes da sua fação que chegavam para votar

Em causa estavam as eleições para a Distrital de Lisboa do PSD. O deputado Pedro Pinto, alinhado com Pedro Passos Coelho, era o único candidato à liderança. Mas, com uma guerra em curso na concelhia, a fação anti-passista precisava de fazer uma demonstração de força ao levar a votos na mesa de Lisboa uma lista para os delegados à Assembleia Distrital de militantes. Era a Lista L.

O líder desse movimento era o filho de Daniel, Rodrigo Gonçalves — o cacique de Lisboa que controla mais votos — e que estava dois pisos abaixo, mesmo à porta da sala de votações, e agia como se fosse um mestre de cerimónias. Era quase impossível um militante não ser cumprimentado por ele antes de votar, ou não receber ajuda (mesmo que não a pedisse) para identificar a respectiva mesa de voto. Neste acto eleitoral, o ambiente na sala onde decorriam as votações era muito diferente das mesas de voto a que estamos habituados nas eleições nacionais. Este é outro mundo: há candidatos dentro da sala onde estão as urnas e a sua presença é um prolongamento da campanha.


Pedro Pinto, o candidato a líder da distrital, terá dito várias vezes a Rodrigo Gonçalves que não devia estar ali, naquela zona tão próxima das votações, e que o seu comportamento era “inaceitável”. Aquela permanência do lado de dentro da porta estava a ser vista como uma forma indireta de pressão sobre os votantes. Rodrigo Gonçalves diz ao Observador que estava a “cumprimentar militantes” e não a “abordar” as pessoas. “Cumprimento sempre toda a gente em todas as eleições, e as pessoas vêm ter comigo”, justifica.

[Neste vídeo publicado no Facebook por um militante do PSD, pode ver-se Rodrigo Gonçalves a cumprimentar os militantes que chegam à sala onde estão as urnas de voto. Pedro Pinto está ao seu lado]


Os notáveis do PSD que estavam do lado de Rodrigo Gonçalves (e contra o líder do partido, Pedro Passos Coelho) tinham direito a acompanhamento VIP, desde a entrada no hotel até à mesa de voto, dentro da sala, e depois no regresso. Enquanto votava Nuno Morais Sarmento, o cabeça da lista da oposição interna, Rodrigo Gonçalves afastou-se dele por breves instantes para ser simpático com o Observador: “Então, estão a conseguir tudo para fazerem o vosso trabalho?”.


O Observador estava a seguir a eleição com três câmaras e três jornalistas, de modo a identificar a forma de operar dos caciques do PSD. Tinha uma equipa dentro do Hotel Sana e outras duas a filmar as manobras de bastidores: uma câmara estava instalada na janela do quarto 211 do Hotel Eduardo VII, em frente ao Sana, na Avenida Fontes Pereira de Melo; a outra estava voltada para o largo que fica nas traseiras daquela unidade hoteleira, na janela do quarto 101 do Hotel Sana Capitol (outra unidade do Sana), e que captava imagens dos acontecimentos na porta de trás, a mais próxima da sala onde decorriam as votações.

Esta carrinha Seat, conduzida por Luís Saldanha, é propriedade do próprio Rodrigo Gonçalves e fez vários transportes de militantes

Toda a simpatia da família Gonçalves era importante na luta que travavam pela afirmação política nesta luta interna do PSD, depois de terem sido varridos das listas de candidatos às autárquicas pela liderança distrital do PSD. Quando se diz que Rodrigo Gonçalves é um cacique que controla os votos de cerca de 600 militantes, não é só por os conhecer a todos pelo nome, por saber das suas vidas e por fazer marcação cerrada a monitorizar quem aparece e quem falha num momento decisivo como este. É também por criar todas as condições para que os “seus” militantes compareçam: Luís Saldanha, ex-candidato do PSD à Junta de Freguesia de Marvila, andou toda a tarde e toda a noite a conduzir uma carrinha Seat cinzenta que descarregava militantes à porta do hotel e os recolhia depois de votarem, para os transportar de volta ao local onde vivem.


Segundo a documentação consultada pelo Observador na Conservatória do Registo Automóvel, esta carrinha pertence ao próprio Rodrigo Gonçalves, que depois confirmou esse facto ao Observador. Ao longo das seis horas em que decorreram as votações, Luís Saldanha, o condutor — que também fazia parte da Lista L para os delegados à Assembleia Distrital — estabeleceu contacto, várias vezes, com o pai de Rodrigo, Daniel Gonçalves, e com o pastor evangélico Ismael Ferreira, ex-líder da extinta secção Oriental de Lisboa e cacique bem conhecido pelos sociais-democratas na capital. Enquanto conversava com aqueles dois dirigentes, Luís Saldanha marcava nomes numa lista dos militantes já transportados e por transportar.

Contactado pelo Observador, Luís Saldanha começou por dizer que estava junto ao Sana apenas como eleitor. Não explicou logo porque é que andava a transportar militantes na carrinha de Rodrigo Gonçalves, remetendo esclarecimentos para mais tarde, quando saísse do trabalho. Horas depois, confirmou que tinha pedido o carro emprestado a Rodrigo Gonçalves porque a sua viatura BMW tinha feito a revisão e estava já preparada para uma viagem ao Algarve no dia seguinte. Luís Saldanha admitiu ter ido a Marvila três vezes para recolher uns 12 ou 13 militantes.

“Todos votaram na lista L [de Morais Sarmento e Rodrigo Gonçalves]. Nem fazia sentido andar a transportar pessoas para votarem noutra lista. Mas dois deles votaram em Pedro Pinto para a liderança da distrital”. Ou seja, não votaram em branco, ao contrário do que terá feito a maioria dos apoiantes da lista L.

Luís Saldanha admitiu que esteve em contacto com Daniel Gonçalves e Ismael Ferreira, mas rejeitou que tivesse feito qualquer articulação dos transportes. Apenas tinha uma lista dos militantes que ia transportar e ia riscando os seus nomes.


Questionado pelo Observador sobre que participação teve na organização do transporte dos militantes, Daniel Gonçalves respondeu por SMS: “Nenhuma!!!” Também negou ao Observador ter-se articulado com os motoristas das várias carrinhas identificadas pelas câmaras.

Esta carrinha, conduzida por Carlos Nunes, funcionário da junta das Avenidas Novas, transportava militantes para a fação de Rodrigo Gonçalves

Outra carrinha que esteve a descarregar e a recolher militantes junto à porta das traseiras do Sana foi uma Citroën azul escura, conduzida por Carlos Nunes, funcionário da Junta de Freguesia das Avenidas Novas, presidida, precisamente, por Daniel Gonçalves, e também membro da Lista L encabeçada por Nuno Morais Sarmento.


A forma de funcionamento das duas viaturas era idêntica: chegavam junto à porta das traseiras do Sana cheias de passageiros e os condutores deixavam-nas estacionadas em segunda fila. Ficavam normalmente à espera cerca de 20 minutos, enquanto os militantes votavam, e depois encaminhavam-nos de novo para os carros, para serem transportados de regresso ao local onde tinham sido recolhidos.

Apesar de ter começado por negar ao Observador que tivesse alguém a “trabalhar” para si no transporte de militantes, depois de confrontado com a propriedade da carrinha Seat Rodrigo Gonçalves admitiria pelo menos a utilização de duas viaturas, conduzidas por elementos “que fazem parte da lista, para levar e trazer filiados”. O presidente interino da concelhia de Lisboa diria ainda que não contratou ninguém para o efeito, mas reconheceu ao Observador ter garantido o transporte de “pessoas que eventualmente não tenham carro ou forma de se deslocarem” à zona onde decorria o escrutínio.

Rodrigo Gonçalves justificou assim ao Observador o uso da sua carrinha: "As pessoas nos seus carros pessoais não podem ir buscar pessoas? Isso é caciquismo?"

Num tom mais irritado durante a conversa, questionou: “As pessoas nos seus carros pessoais não podem ir buscar pessoas? Isso é caciquismo? É o meu próprio carro: faço com ele o que quiser. É o meu carro pessoal que vai buscar as pessoas que for preciso”, afirmou ao Observador.

Em vários casos testemunhados pelo Observador, alguns dos passageiros que se deslocaram nas duas carrinhas relacionadas com Rodrigo Gonçalves falavam uns com os outros como se não se conhecessem entre si. Já os condutores, pelo contrário, foram filmados a falar um com o outro. Luís Saldanha garante que não era sobre os transportes. Carlos Nunes não respondeu a um pedido de contacto feito para a junta de freguesia.


Os lugares nos carros eram distribuídos conforme a ordem de saída: “Vocês saem primeiro”, disse um dos condutores a duas passageiras antes de entrarem nas carrinhas. Alguns dos militantes manifestavam expressões de surpresa quando entravam na viatura (“ai, uma destas é que eu devia comprar”), confirmando que não era habitual deslocarem-se naquele automóvel noutras circunstâncias.

Estes detalhes desvendam a forma de funcionamento das máquinas partidárias das fações concorrentes no concelho de Lisboa, tendo em vista um objectivo decisivo: levar o maior número possível de militantes a votar nestas eleições internas, para fazer uma demonstração de força o mais vigorosa possível. O Observador sabe que houve muitos carros envolvidos no transporte de militantes de ambos os lados, segundo relatos de dirigentes das duas partes em confronto — um deles contou que o seu automóvel também estava ao serviço nesse dia –, mas não foi possível detetar todas as movimentações nem todas as repetições de viaturas, porque nem todos paravam em frente ao hotel. Mais: fontes de ambos os lados, em declarações ao Observador, acusam os rivais de terem utilizado autocarros para transporte de militantes arrebanhados, mas ninguém assume tê-los visto. O Observador filmou as entradas do hotel durante as seis horas das votações e não registou a chegada de autocarros num raio próximo da unidade onde decorriam as votações.


2 - A importância desta eleição. Porque está o PSD de Lisboa em guerra?

Nestas eleições, havia apenas um candidato a presidente da Distrital lisboeta do PSD: Pedro Pinto, deputado, apoiante de Pedro Passos Coelho, numa linha de continuidade da anterior direção de Miguel Pinto Luz, vice-presidente da Câmara de Cascais. Ou seja: nem sequer estava em causa uma disputa pela liderança da estrutura. Ninguém quis fazer frente ao homem que era ao mesmo tempo candidato a líder e presidente da Mesa da Assembleia Distrital, o órgão responsável pelo ato eleitoral.

“Qualquer forma de cacicagem para mim é inaceitável. Seja feita por quem for", diz Pedro Pinto ao Observador

Mas havia muito mais em jogo do que a liderança do distrito. Com o PSD no concelho de Lisboa em guerra interna aguda, ao mesmo tempo que se aproximam as autárquicas, estas eleições serviam dois objetivos: um objetivo local, onde Rodrigo Gonçalves fazia prova de força para mostrar que a concelhia será sua quando houver eleições; e um objetivo nacional, onde já se se prepara o confronto entre Pedro Passos Coelho e um challenger que pode ser Rui Rio.

A guerra na concelhia lisboeta — que está há anos sujeita aos equilíbrios de fações desavindas — acentuou-se com o recuo de Pedro Santana Lopes em relação a uma candidatura à câmara de Lisboa e desenvolveu-se com a forma como Teresa Leal Coelho foi imposta à concelhia. Isso levou à demissão de Mauro Xavier de líder do PSD/Lisboa e à ascensão de Rodrigo Gonçalves a presidente interino da estrutura, por ser o primeiro vice-presidente da comissão política. Mas não de forma pacífica.

Rodrigo Gonçalves não tem maioria na sua própria comissão política concelhia e viu o órgão que encabeça chumbar todos os candidatos a juntas de freguesia que apresentou. Pior: a distrital vetou depois o nome do seu pai, Daniel Gonçalves, como candidato à junta das Avenidas Novas, usando como justificação uma investigação do Observador sobre um conjunto de adjudicações suspeitas naquela freguesia (e na junta de São Domingos de Benfica, que tinha sido presidida por Rodrigo Gonçalves). Daniel Gonçalves foi o único dos cinco presidentes de junta do PSD que não foi escolhido para se recandidatar. “Dia 1 de Outubro veremos se foi a melhor opção”, comentou Daniel Gonçalves ao Observador, numa resposta por escrito.


Os acontecimentos seguintes levaram a família Gonçalves a sentir necessidade de fazer uma prova de força em Lisboa. Rodrigo Gonçalves tem pedido com insistência eleições para a concelhia. Os membros da comissão política a que preside chegaram a aprovar o seu afastamento como interino numa votação que ele perdeu por 10-4, mas os estatutos dizem que só a assembleia de militantes tem capacidade para o destituir. Entretanto, Miguel Pinto Luz, presidente da Distrital do PSD, convocou eleições antecipadas, contrariando uma recomendação do Conselho Nacional do partido para não haver disputas internas antes das autárquicas. Pedro Pinto, como presidente da Mesa, convocou as eleições ao mesmo tempo que avançou como candidato a presidente da distrital. Mas não aceitou convocar eleições para a concelhia e manteve a liderança da secção de Lisboa no limbo. Isto foi visto pelo setor rival do partido anti-Passos Coelho como “uma golpada”.

O ambiente de guerrilha instalado levou mesmo Rodrigo Gonçalves a dizer que Passos Coelho estava a seguir “uma linha estalinista” por causa das purgas nas listas autárquicas que o incluíam a si, ao seu pai e aos seus apoiantes. Sem capacidade para ter um candidato vencedor à distrital, Gonçalves passou ao ataque com a promoção de uma lista para um órgão secundário — os delegados à Assembleia Distrital — e convenceu Nuno Morais Sarmento a encabeçar a Lista L, que se posicionava como crítica do líder do PSD e lançava sementes políticas para um futuro próximo. Pela primeira vez, Rodrigo Gonçalves teve a seu lado os notáveis. Manuela Ferreira Leite aceitou ser a primeira subscritora da Lista L. Para mostrar influência e posicionar-se na disputa nacional que se avizinha, Gonçalves organizou um jantar dez dias antes da eleição com Rui Rio, que falou para centenas de militantes lisboetas. O jantar decorreu à porta fechada, por se ter realizado poucos dias depois da tragédia de Pedrógão Grande.


3 - Uma operação de sucesso. Gonçalves com mais votos que nunca
A operação correu bem a Rodrigo Gonçalves. Nas eleições internas de 1 de julho, fez a sua demonstração de força, que se mede por dois resultados. Primeiro: a Lista L, encabeçada por Morais Sarmento, ganhou por 801 votos, contra 597 da Lista A, afeta a Pedro Pinto. Isto significa que Gonçalves conseguiu o que pretendia: mostrar que, quando a concelhia for a votos, ele tem uma vantagem de duzentos votos em relação às fações rivais, se conseguir o mesmo grau de mobilização.

Segundo resultado: enfraqueceu a vitória de Pedro Pinto, que ficou atrás da soma dos votos brancos e nulos. Nos boletins para a comissão política distrital, Pedro Pinto obteve 702 votos expressos, contra 740 brancos e nulos.

Aqui está uma das chaves para se perceber que houve centenas de votos fruto de cacicagem e do transporte dos militantes para votarem com instruções claras dadas pelos dirigentes: no boletim para a comissão política distrital, era suposto os militantes afetos à Lista L votarem branco ou nulo. Fontes que estiveram nas mesas de escrutínio dizem ao Observador que havia filiados a pedir só o boletim azul — para votarem nas listas para os delegados — e que por vezes diziam nem querer receber os restantes papéis: para escolher o presidente da Comissão Política Distrital, a Mesa da Assembleia, o Conselho de Jurisdição, e a Comissão de Auditoria, cada papel com a sua cor. As mesmas fontes suspeitam que muitos “inscritos” no PSD estavam instruídos para votar apenas na Lista L e para votar em branco em tudo o resto.


Rodrigo Gonçalves não reconheceu ao Observador que existissem instruções dadas aos militantes no sentido de votarem branco ou nulo. “Há um descontentamento enorme em Lisboa que é maioritário e isso ficou claro com os brancos e nulos”, afirmou o dirigente. “Apresentámo-nos a uma eleição [para os delegados à Assembleia Distrital] não a outra. Só devíamos falar do projeto onde estamos”, acrescentou, para argumentar que não apelou ao voto em branco.
Nuno Morais Sarmento diz que os seus atuais adversários estão a provar "o veneno" que criaram: o cacique Rodrigo Gonçalves

O nível de votação conseguido pela Lista L confirma que a influência de Rodrigo Gonçalves está a crescer, embora haja aqui um efeito de arrastamento pelo nome de notáveis como Morais Sarmento. Nas eleições de 2011 para a distrital, em que havia uma disputa entre quatro fações, a lista de Gonçalves venceu a disputa pelos delegados distritais com 30% dos votos, o que correspondeu à mobilização de 511 militantes. Em 2013, noutra disputa entre quatro listas para a mesma assembleia, a percentagem subiu para 40% e 535 votos de militantes. Na votação para a lista de delegados ao congresso do PSD em abril de 2016, cresceu a força da fação que tem o Núcleo Central como sua base de poder: num concurso entre seis listas, teve 726 votos, o que correspondeu a 51% dos militantes do PSD que foram votar. Agora, o número de militantes alinhado com a família Gonçalves subiu para 801.

Os números das votações demonstram outro facto que se repete sucessivamente nas eleições internas dos partidos, um fenómeno que não é exclusivo do PSD (passa-se o mesmo no PS): a baixa participação dos filiados com quotas pagas nas eleições internas, e o pagamento massivo de quotas. Dos 3.588 inscritos que constavam dos cadernos eleitorais no concelho de Lisboa, apenas 1.442 (40,1%) foram votar ao Hotel Sana. Isto indicia uma prática habitual a que recorrem os caciques de todas as fações: o pagamento massivo de quotas a todos os militantes da sua influência, para estarem aptos a votar na data das eleições. Os caciques pagam as quotas ao máximo de filiados, mas como uma grande parte dos que constam dos cadernos eleitorais são inscritos que foram arrebanhados e não são verdadeiros militantes interessados na vida política do país e do partido, acabam por se abster. Por isso é que estes “cabos eleitorais” têm de promover transportes para o máximo de militantes, têm de fazer um esforço para levar as pessoas às urnas de voto, e garantir a maior participação possível dos votantes do seu lado. Um militante que paga a quota voluntariamente e depois não vota numa eleição determinante para o partido, é um militante que faz pouco sentido.


Foi a este tipo de esforço de levar o máximo de militantes a votar que o Observador assistiu no dia 1 de julho.


4 - Quem são os personagens principais e como estavam a operar
Ao fim da tarde, um acontecimento inesperado obrigou a vários contactos entre os caciques: o trânsito na Avenida Fontes Pereira de Melo foi cortado durante quase duas horas por causa da corrida do Sporting. Ismael Ferreira foi informado por um dos ajudantes da sua fação de que agora tinham de “descarregar” (foi o termo usado) as pessoas na parte de trás do hotel.

Ismael Ferreira, que há anos chegou a ser acusado de pagar votos, passou todo o tempo das votações à porta do hotel a controlar os militantes que chegavam. É um aliado de Rodrigo Gonçalves


Ismael Ferreira — que passou as seis horas de votações a controlar militantes e que se manteve à porta do hotel mesmo quando a avenida estava fechada e não havia ninguém a entrar por ali — é um velho cacique do PSD de Lisboa. Liderou a secção Oriental antes da extinção das nove secções e da criação dos três núcleos e da concelhia. Embora agora lhe atribuam menos poder e influência — em número de votantes — do que tinha em 2009, quando foi acusado por militantes do PSD de comprar votos, foi fundamental na manobra da família Gonçalves.

Há oito anos, quando foi apontado por alegadamente pagar votos a 20 euros ou 25 euros a militantes inscritos nos bairros sociais, chegou a reconhecer à revista Sábado: “Podem ter visto uma coisa pontualíssima de alguém que sai de um táxi a quem se prometeu um pagamento do transporte.” Na sequência da notícia sobre o pagamento a militantes, acusou o jornalista que assinava a peça de ter oferecido dinheiro a fontes em troca de informações. Fez queixas em três entidades reguladoras e todas elas ilibaram o jornalista (Vítor Matos, um dos co-autores deste artigo que está a ler). Em 2016, Ismael Ferreira acabou por reconhecer, no âmbito de um acordo judicial para não ir a julgamento por difamação, que o que tinha afirmado não era verdade.

Entretanto, tornou-se pastor evangélico e perdeu parte do seu antigo poder de mobilização ao separar-se de outros antigos aliados. A articulação com Rodrigo e Daniel Gonçalves foi vista no partido como consolidada em 2013, quando Ismael Ferreira recebeu uma avença da Junta de Freguesia das Avenidas Novas no valor de 5,4 mil euros para, como licenciado em Sociologia, fazer o “desenvolvimento do diagnóstico social do bairro do Rego no âmbito do projeto da sala de estudo/banco de livros”, em nove meses, segundo consta no portal base.gov. Ismael Ferreira, apesar de contactado pelo Observador, desligou o telefone assim que percebeu que do outro lado estava um jornalista. Não voltou a atender e não respondeu à mensagem escrita que lhe foi enviada.

A família Gonçalves tem um longo currículo e experiência na angariação de votos em Lisboa. Ao longo dos anos, as juntas de freguesia têm sido o pólo de poder que lhes permite manter um número significativo de militantes. Várias fontes, sob anonimato, relatam que, para manterem as avenças nas juntas controladas pela família — primeiro em São Domingos de Benfica e agora nas Avenidas Novas –, têm de arranjar novos militantes que devem levar a votar quando há eleições internas no PSD.

O primeiro escândalo relacionado com a Secção A, onde Rodrigo Gonçalves já era o principal cacique — embora o líder fosse Sérgio Lipari –, rebentou em 2003, por causa de uma forma demasiado criativa de atrair novos militantes no bairro da Boavista. O isco eram senhas para estadias num hotel do Algarve, em Albufeira, disponibilizadas pelo Montepio Comercial e Industrial, onde Daniel Gonçalves tinha funções de gestão. Uma moradora denunciou o caso numa sessão da Assembleia Municipal de Lisboa: Anabela de Jesus Leonardo, jurista e também autarca do PSD, queixou-se de ter sido agredida por Daniel Gonçalves e pela mulher na sequência das denúncias, mas o casal não foi condenado em tribunal, que decidiu in dubio pro reo (quando há dúvidas decide-se a favor do réu).

Os Gonçalves cultivavam os métodos básicos de arrebanhamento: em 2007, os membros da família tinham, nas suas casas, oito militantes inscritos numa morada, dez noutra e 15 numa terceira. Em 2015, Rodrigo e Daniel foram julgados pelo crime de corrupção passiva para ato ilícito por factos ocorridos na junta de São Domingos de Benfica, mas acabaram por ser absolvidos por não ser possível provar a acusação. Outro réu, que seria uma testemunha essencial, tinha fugido para o estrangeiro e não compareceu em tribunal: esse foi condenado a quatro anos de prisão. Rodrigo Gonçalves seria mais tarde condenado em tribunal, mas por uma agressão levada a cabo em 2009 contra Domingos Pires, um autarca do PSD de 71 anos, que presidia à junta de Benfica. Pedro Reis, entretanto presidente do Núcleo Central do PSD, foi igualmente condenado por essa agressão. O Tribunal da Relação confirmou a decisão depois de Gonçalves recorrer.

O último caso sobre os Gonçalves a dar que falar teve a ver com uma investigação do Observador. Quando era presidente da junta de Freguesia de São Domingos de Benfica, no verão de 2013, Rodrigo cancelou seis contratos com empresas de militantes do PSD e no dia seguinte voltou a firmar novos contratos, com outros prazos, com as mesmas seis sociedades. Isto aconteceu exatamente na véspera de abandonar a gestão da junta e de começar a trabalhar no gabinete do secretário de Estado do Emprego, em 2013. Os referidos contratos só seriam publicados no portal base.gov depois das eleições autárquicas de 2013 (em que Daniel Gonçalves foi eleito presidente da Junta de Freguesia das Avenidas Novas). A presidente da junta que substituiu Rodrigo Gonçalves em São Domingos de Benfica havia de cancelar os contratos com essas empresas contra um parecer dos serviços quando já estava em gestão — após as eleições autárquicas. Cinco dessas firmas seriam contratadas por Daniel Gonçalves poucos meses depois nas Avenidas Novas.


5 - Quem são os caciques do lado do Pedro Pinto
Nas traseiras do hotel, os caciques que apoiavam a fação da linha oficial da distrital e que trabalhavam para ajudar Pedro Pinto movimentaram-se desde a abertura das urnas. Nuno Firmo controlava as operações: é o líder do Núcleo Ocidental de Lisboa, onde as figuras mais influentes são o autarca Luís Newton, presidente da Junta de Freguesia da Estrela, e o deputado Sérgio Azevedo. Nuno Firmo era vogal da comissão política na lista de Pedro Pinto, e é especialista no controlo de votações desde que era dirigente da JSD.

Nuno Firmo falava ao telefone, tinha sempre um papel com uma listagem na mão e estava acompanhado por Carlos Martins, um amigo dos tempos da JSD (Carlos Martins não respondeu aos contactos do Observador). Em 2012, vários estudantes do ISEG acusaram-nos de promoverem a falsificação de fichas de militantes da “jota” a partir da faculdade, para votarem em 2010 na antiga Secção I, liderada por Sérgio Azevedo, nas diretas que elegeram Pedro Passos Coelho. O Ministério Público chegou a abrir uma investigação por suspeitas do crime de falsificação, mas o caso foi arquivado em outubro de 2015: não foi possível “apurar com a necessária certeza indiciária a intervenção dos arguidos nos factos denunciados”, pode ler-se no despacho de arquivamento.

O deputado Sérgio Azevedo diz ao Observador que “é normal fazer militantes e levá-los a votar.” Para o dirigente social-democrata, “não há ali nenhuma atividade diferente do que se passa em qualquer eleição partidária: as pessoas têm amigos militantes que levam a votar”. E acrescenta: “Acontece em todo o lado e em todas a seções do PSD em Lisboa”.


Nuno Firmo reconhece ao Observador que tinha na mão “uma lista manuscrita de nomes de 10 ou 12 amigos que tinham dito que iam votar”. E até refere um casal de amigos que fez militantes na JSD nos tempos de estudantes, que se deslocaram de Santarém para votar (embora a eleição diga apenas respeito aos que moram no distrito de Lisboa).

Nuno Firmo, presidente do Núcleo Ocidental, vogal da lista de Pedro Pinto, passou seis horas a acompanhar a votação

A trabalhar ativamente com Nuno Firmo na mobilização de militantes estava Gonçalo Perdigão Soares, vice-presidente da concelhia da JSD de Lisboa, coordenador da Associação Académica da Universidade Lusíada. Tinha também papéis com listagens de militantes — como se pode ver nos vídeos do Observador — e conduziu um Volvo na organização da mobilização dos militantes ao longo das seis horas em que decorreu a votação (por exemplo, foi a Santa Apolónia receber o casal de militantes que chegou de Santarém).

Gonçalo Perdigão Soares reconhece que a lista que consultava, e que se pode ver nos vídeos do Observador, servia de controlo para os militantes que esperava que fossem votar. “Eram 32 amigos meus que eu pus [como militantes], com os quais eu conversei e que saberia que iam votar por reconhecerem valor no Nuno [Firmo].”


O outro influente daquela fação lisboeta, Luís Newton, presidente da Junta de Freguesia da Estrela, diz ao Observador que “a mobilização eleitoral é normal” nos partidos. “Todos temos um telefone. Aquelas pessoas com quem vamos trabalhando ao longo do ano e trabalhando politicamente, tentamos que venham votar”, reconhece. “O que não considero normal é haver quem pague votos. Nunca assisti, mas correm histórias de que isso existe no partido e que tem sido um fator de diferenciação da capacidade eleitoral de uns e de outros”, afirma Luís Newton ao Observador.

Luís Newton, presidente da Junta da Estrela, apoiante de Pedro Pinto, diz que há caciquismo aceitável, mas não admite que se paguem votos

O presidente da junta da Estrela reconhece que dirigentes próximos de si tinham listas “a fazer contagens”. E justifica: “Há mobilização e mobilização. Há cacique e cacique: o cacique normal é falar com as pessoas para as levar a votar. Ir buscá-las não. Há momentos em que temos de traçar uma linha. Isso só deve ser válido quando há uma dificuldade de mobilidade ou quando não têm forma de ir votar. Pegar no telefone é uma forma saudável de ver se estão interessados ou não em participar. O outro tipo de cacique que não é saudável, é quando há operações financeiras envolvidas. Essa troca de participação política por dinheiro é uma coisa que me revolta e que repudio”. No entanto, Newton deixa a suspeição no ar sem ir ao ponto de acusar os adversários de pagarem pelos votos.


Confrontado com as provas de caciquismo dos dois lados da disputa eleitoral, o novo líder distrital, Pedro Pinto, diz ao Observador que não aprova este tipo de práticas, mas evita comentar em concreto as que respeitam aos seus apoiantes: “Qualquer forma de cacicagem para mim é inaceitável. Seja feita por quem for. Cacicagem tem a ver com transporte de pessoas que vão a um ato eleitoral sem saber o que vão fazer. São votantes, não são militantes.”


6 - A participação dos “notáveis”: Sarmento com Rodrigo, Ferreira Leite acompanhada por António Preto
Nuno Morais Sarmento e Manuela Ferreira Leite, os notáveis ligados à candidatura da facção de Rodrigo Gonçalves, tiveram direito a um tratamento especial. No caso da ex-líder do PSD e ex-ministra das Finanças, Rodrigo Gonçalves acompanhou-a ao longo de todo o trajecto dentro da sala de votações. Levou-a à mesa errada, porque se esqueceu de que se chama Maria Manuela (e não apenas Manuela), mas depois ficou com a comentadora da TVI na fila até chegar à mesa onde a identificaram e lhe entregaram os boletins de voto. António Preto, sucessor de Ferreira Leite na Distrital de Lisboa do PSD em 2002, juntou-se rapidamente a Rodrigo Gonçalves. Enquanto a ex-ministra votava, numa mesa com pouca privacidade, a três metros de distância, Rodrigo Gonçalves e António Preto combinaram entre si: “Depois vamos levá-la à porta”.

Manuela Ferreira Leite, apoiante de Morais Sarmento, foi recebida pela família Gonçalves, mas não quis comentar este tipo de práticas no partido

Ferreira Leite ainda falou aos jornalistas, de forma quase telegráfica, à porta da sala de votações. Acabou por ser apenas António Preto a subir no elevador com a ex-ministra das Finanças, para saírem pela porta principal, onde estavam Ismael Ferreira e Daniel Gonçalves. O pai de Rodrigo fez questão de a cumprimentar com dois beijinhos e de lhe agradecer: “Sôtora, muito obrigado pela sua presença”.

Ao saírem do hotel, António Preto e Manuela Ferreira Leite subiram sem pressas a Avenida Fontes Pereira de Melo a pé, a conversar, com uma pequena paragem para cumprimentar alguns militantes que vinham a descer. É coincidência, mas, quando iam a meio desse percurso, a carrinha verde encheu-se de militantes que já tinham ido votar: o condutor fez o pisca para a esquerda, arrancou e passou pelos notáveis.

A relevância de António Preto não é secundária. Esteve afastado das lides partidárias até ser absolvido, no ano passado, das acusações de fraude fiscal e falsificação de documento, 14 anos depois de ter sido constituído arguido. O caso também tinha a ver com o alegado pagamento de quotas de militantes para uma candidatura sua à distrital, que teriam sido pagas por empreiteiros com dinheiro que vinha numa mala — daí ter ficado com a alcunha de “o homem da mala”. António Preto já foi a figura mais influente no aparelho do PSD no distrito de Lisboa. Asdrúbal Gonçalves, irmão gémeo de Rodrigo, chegou a dizer, num dos processos que a família teve em tribunal, que era António Preto que pagava as quotas dos militantes que eles arranjavam nos bairros da zona de Benfica. Foi António Preto que, entre 1995 e 2000, expandiu a militância naquela zona da extinta Secção A, e que mais tarde seria a base de poder da família Gonçalves. Em 2010, a Secção A tinha mais de 1.400 militantes, tantos quantos os que foram votar no dia 1 de julho para a distrital de Lisboa. Manuela Ferreira Leite, amiga de António Preto, deve-lhe o facto de ter chegado a líder distrital do PSD, e o contributo na sua eleição como presidente do partido. Preto não quis falar ao Observador por se encontrar fora do país.

Manuela Ferreira Leite também não quis pronunciar-se sobre o que aconteceu no dia das eleições internas, nem António Preto ou sobre a lista afecta a Rodrigo Gonçalves. “Coisa em que não me meto neste momento é na máquina do partido. Não falo sobre isso de forma nenhuma. O meu apoio ou subscrição da lista tem a ver exclusivamente, com o dr. Morais Sarmento. Estou completamente à parte dessas matérias, que não desconheço que fazem parte das máquinas do partido. Mas não há ninguém metido nos aparelhos que não seja assim”, acabou por dizer ao Observador.

Pouco depois de Manuela Ferreira Leite sair do Hotel Sana, chegou Nuno Morais Sarmento, o cabeça da lista L, que assumiu a oposição a Pedro Passos Coelho. Entrou pela porta das traseiras e tinha à sua espera não só Rodrigo Gonçalves como o pai, que desceu da entrada principal nesse instante para cumprimentar o ex-ministro da Presidência de Durão Barroso e depois de Pedro Santana Lopes. António Preto e Rodrigo Gonçalves acompanharam-no dentro da sala de votações, replicando o que tinham feito com Ferreira Leite. À saída, Morais Sarmento respondeu durante cinco minutos aos jornalistas sobre uma eventual disputa pela liderança do partido. Com Rodrigo Gonçalves a seu lado, disse que o facto de encabeçar a lista a delegados se tratava “de uma aposta de participação na reanimação, na revitalização de um PSD que tem de estar mais preparado para as batalhas que se aproximam”. Essas batalhas seriam uma luta pela liderança depois das autárquicas. Questionado sobre um possível apoio ao ex-presidente da Câmara do Porto, Morais Sarmento não fugiu: “Rui Rio é um militante com quem trabalhei há muitos anos, é capaz de ter 30 anos o primeiro combate que fizemos juntos, tenho a certeza de que faremos no futuro próximo novamente combates juntos”.

Sobre o facto de aparecer ao lado de um dirigente com a reputação de Rodrigo Gonçalves, Morais Sarmento diz ao Observador que Gonçalves é “uma criação de Passos Coelho e companhia” e esteve ao lado de Miguel Pinto Luz e de Carlos Carreiras nos últimos anos, até passar para o outro lado da barricada. “Há dois anos, quando me candidatei a presidente da Assembleia Distrital, Passos Coelho, Carlos Carreiras e Pinto Luz estavam muito contentes sentados em cima dos votos do tal Rodrigo. Foi assim que começou. Agora estão a provar do veneno que produziram”, diz Nuno Morais Sarmento ao Observador.

Morais Sarmento conta ter conhecido Rodrigo Gonçalves na sequência das tentativas recentes de o convencerem a candidatar-se à Câmara de Lisboa. Acha que haver eleições para a distrital contra as recomendações do Conselho Nacional, sem que possa haver eleições para a concelhia — para dificultar o caminho a Gonçalves –, “não é sério, é desnecessário e é um disparate”. O ex-ministro diz que toda a vida foi “anti-aparelho” e que fez “um percurso solitário para não estar dependente nem alinhado com nenhum cabo de armas do partido” e recorda que esteve num congresso sozinho contra as eleições diretas por entender que potenciavam este tipo de práticas.


O líder do partido votou tarde. Já eram 22h00 e Passos Coelho ainda não tinha aparecido. Faltava uma hora para o fecho das urnas. Rodrigo Gonçalves chegou a tentar fazer uma graça, quando comentou com o Observador: “Se o Passos vier depois da hora, não o deixamos entrar. Não é da minha lista…” O presidente do partido havia de exercer o seu direito de voto pelas 22h30, meia hora antes de as urnas fecharem. À entrada da sala, trocou um frio aperto de mão com Rodrigo Gonçalves. Contactado pelo Observador para comentar estas práticas no PSD/Lisboa, Pedro Passos Coelho não quis falar.


7 - Afinal o candidato não constava dos cadernos eleitorais: a guerra não para
Houve mais confusões nas eleições internas do PSD/Lisboa. Pedro Pinto tem mais de 50 anos e fez a escola toda da JSD, de que foi líder. Por isso, sabe como poucos de eleições internas e processos eleitorais. Mas o seu nome não constava dos cadernos eleitorais porque, alegadamente, não teria pago as quotas a tempo. Isso significa que, segundo os estatutos, o candidato único a líder distrital do PSD não poderia votar, muito menos candidatar-se a qualquer cargo no partido.

O nome de Pedro Pinto foi acrescentado à mão no fim da listagem, contou ao Observador Ângela Cruz, a militante que estava como delegada na mesa de voto número seis, onde votou o candidato à liderança da distrital, em representação da lista L. “Quando ele foi votar, fui à procura dos Pedros e não encontrei o nome dele. A presidente da mesa é que informou que o nome estava na última folha, acrescentado à mão”, diz ao Observador.


O nome de Pedro Augusto Cunha Pinto, de facto, não consta do caderno eleitoral, segundo o Observador pôde constatar e o próprio candidato confirmou ao Observador: “O facto de o meu nome não constar foi comunicado ao secretário-geral adjunto do partido. Houve sete ou oito nomes que não constavam e tiveram de ser corrigidos“, garante Pedro Pinto. “Essas pessoas são golpistas”, acusa o líder distrital eleito, que ao Expresso deste sábado iria mais longe, ao classificar como “escroques” os membros da fação liderada por Rodrigo Gonçalves. “Tiveram conhecimento disto e agora é que levantam o problema?” O deputado e ex-vice-presidente de Passos no PSD argumenta: “Depois de serem distribuídos pelas candidaturas, os cadernos têm um tempo para serem regularizados. Veio tudo num documento a dizer que as minhas quotas estavam pagas”. O documento tem data de 26 de junho, quatro dias antes das eleições e tem a assinatura de Ângela Cruz, a delegada na mesa, em que se sustenta a tentativa de impugnação. Pedro Pinto não tem um comprovativo de multibanco de pagamento das quotas, ou um vale postal, porque estas foram pagas por cheque. Uma fonte da Lista L argumenta que ele pode ter passado o cheque depois do prazo com uma data anterior.

As polémicas não acabam aqui. Pedro Pinto participou nesta eleição numa dupla condição: era candidato e ao mesmo tempo presidente da Mesa da Assembleia distrital, o que significa que também era o responsável pela organização do ato eleitoral. Apesar de ter sido substituído por outro dirigente na condução da eleição no dia 1 de julho, Pinto levou para casa os cadernos de descargas que agora a oposição interna reclama. O novo líder distrital reconhece ao Observador que o caderno onde estão registadas as pessoas que votaram está na sua posse, na qualidade de presidente da Mesa da Assembleia Distrital (cessante). E questiona: “Desde quando é que é entregue o caderno de descargas?”


Esta luta interna do PSD/Lisboa é apenas um ensaio para as outras guerras que estão para começar. Logo a seguir às autárquicas, haverá uma luta pela concelhia e a seguir uma batalha pela liderança do partido. Primeiro, Rodrigo Gonçalves tentará transformar os seus votos em poder efetivo no concelho. Depois, poderá aliar-se a Rui Rio, caso este avance. A acontecer, o ex-presidente da câmara do Porto seria apoiado por grandes caciques do partido, que sempre combateu e criticou. Os candidatos à liderança ficarão sempre dependentes do aparelho?

Caciques. Uma dentadura por votos e outros esquemas nas lutas internas do PS e do PSD

Vítor Matos
20 Julho 2017

As práticas não distinguem PSD e PS. 
São assim há anos. 
Fichas falsificadas, listas manipuladas, chapeladas eleitorais e compra de votos. 
Saiba como uma dentadura virou os votos num bairro do Porto.


1  -  Como uns dentes novos viraram a votação num bairro do Porto

A concelhia do PS no Porto foi palco de muitas guerras, mas ao longo de 25 anos — de 1988 a 2003 — elas foram sempre ganhas pela velha raposa do caciquismo socialista do norte, Orlando Gaspar: nunca perdeu uma eleição nem um candidato por si apoiado foi derrotado. 
Em 2003, a disputa estava outra vez ao rubro. 
Gaspar apoiava Nuno Cardoso, ex-presidente da câmara. 
Do outro lado estava José Luís Catarino, líder da secção de Paranhos. 
E havia um bairro social com muitos votos controlados por um galopim — nome dado aos operacionais dos caciques no século XIX — que era preciso virar a todo o custo. 
A história aconteceu no Viso, freguesia de Ramalde.

O número de militantes tinha subido de 60 para 200, com as quotas pagas por terceiros. 
O trabalho de Orlando Gaspar — ex-vereador no Porto — foi convencer o principal galopim do bairro a mudar de barricada. 
O cacique mais experiente da cidade sabia que o “cabo eleitoral” do Viso mantinha uma relação amorosa com uma camarada (aliás, o caso era público). 
Uma noite, numa reunião da campanha, Orlando Gaspar conheceu a dita namorada, que ainda era jovem, mas surpreendeu-se por a rapariga não ter dentes. 
Perguntou-lhe a razão daquele problema. 
Ela respondeu que não tinha dinheiro para ir ao dentista.

Gaspar pôs-se em campo. 
Há favores que deixam um sentimento de profunda gratidão. 
Falou com pessoas influentes da candidatura e alguém telefonou para a Clínica do Ameal. Marcaram a consulta para o dentista. 
Seria um investimento caro, mas a namorada do galopim recebeu uma dentadura nova paga pela candidatura
Em troca, Nuno Cardoso teve mais um apoio político materializado em votos. 
Com a namorada de dentição branquíssima, o “cabo eleitoral” mudou de lado, apoiou Cardoso e anulou a vantagem de Catarino no bairro. 
No fim da campanha, ele próprio foi premiado com um emprego como auxiliar num hospital do Porto.

Esta história, real mas de contornos anedóticos, é uma caricatura do que se passa nas eleições internas do PS e do PSD em todo o país. 
Não é exclusivo do PSD de Lisboa, cujas eleições para a distrital o Observador investigou. 
São práticas generalizadas que começam na base dos partidos e que depois influenciam toda a cadeia de relações partidárias.


O caciquismo e os partidos organizados numa pirâmide de redes e clientelas à procura de empregos e privilégios foram uma característica da política portuguesa ao longo das décadas em que durou o rotativismo do século XIX



A prática continuou depois na Primeira República e manteve-se com o partido único do salazarismo na ditadura. 
E não acabou com a instauração da democracia.

A palavra cacique começou a ser utilizada pelos conquistadores espanhóis para designar os chefes índios da América do Sul, que faziam a ponte entre a administração colonial e os interesses locais. 
A importação do conceito serviria depois para definir os protagonistas de relações oligárquicas dentro dos partidos. 
Os influentes, que estão mais acima na estrutura, como deputados, secretários de Estado ou ministros, ou em câmaras importantes, são servidos nas eleições internas pelos seus caciques, que controlam autarquias e juntas, que por sua vez têm galopins a trabalhar para si, como braço armado para as operações eleitorais — como a que vimos no dia 1 de julho em Lisboa.


2 - Os resultados albaneses das eleições do PS em Lisboa
Marcos Perestrello teve votações acima dos 90% em secções do PS nas votações para a FAUL, em 2014. 


Em 2014, o PS de Lisboa parecia a velha Albânia. 
Mas não havia apenas um candidato a votos, nem um regime norte-coreano a ameaçar os eleitores socialistas lisboetas. 
Marcos Perestrello — hoje secretário de Estado da Defesa — garantiu uma vitória esmagadora na Federação da Área Urbana de Lisboa (FAUL) com votações superiores a 90% nas maiores estruturas na capital contra António Galamba, outro dirigente experiente a manobrar o aparelho. 
Um desequilíbrio tão grande que parece difícil de explicar.

O que este caso permite concluir, e que se aplica a quase todas as disputas partidárias internas no PS e no PSD, é a inversão da lógica da democracia: não são os militantes que escolhem os dirigentes em quem votar. 
São os dirigentes dos partidos que escolhem os militantes para votar em si próprios, de modo a sustentarem o seu poder. 
Este mundo funciona assim: o dirigente político seleciona o seu próprio universo eleitoral, cria-o à sua medida, para que este depois o escolha a si como líder. 
Um rival que se queira bater com um possuidor de um sindicato de votos dominante não pode simplesmente apresentar-se a eleições com um programa e uma equipa credível: tem de constituir um colégio eleitoral paralelo que lhe garanta mais votos do que o universo do adversário. 
Esta escalada leva a que todos os que quiserem subir dentro de um partido tenham de participar ou pactuar em esquemas destes.

Esta realidade leva a que por vezes haja zonas dos aparelhos partidários inexpugnáveis, dominadas por grupos que acabam por se perpetuar no poder porque ninguém está disposto a desafiá-los com as mesmas armas. 
Mas não é possível derrotá-los com outras.

Aquela luta interna pela FAUL era um combate antecipado, por procuração, entre António Costa e António José Seguro: de um lado estava Marcos Perestrello, presidente da FAUL em exercício, um dos principais apoios de Costa, que já nessa época tinha sido secretário de Estado da Defesa; do outro apresentava-se António Galamba, braço-direito de Seguro no Largo do Rato e responsável pela organização do partido. 
Antigos militantes da JS, eram ambos experientes em matéria de aparelho, o que dá um especial significado às diferenças registadas. 
O resultado final foi de 80% para Marcos Perestrello e de 18% para o homem-forte do ex-secretário-geral do partido. 
Venceu a força gravitacional da Câmara Municipal de Lisboa, liderada por António Costa, que se mostrou mais efetiva e agregadora do que o poder de um líder com data marcada para ser apeado. 
Para os “costistas”, era essencial vencer esta eleição, tendo em conta as primárias que se avizinhavam.

A magnitude da vitória de Perestrello sobre Galamba traduz, de forma exacerbada, a lógica habitual do aparelho. 
Nas ditaduras, quando as eleições são manipuladas e há coação sobre os eleitores, obtêm-se resultados semelhantes. 
Em seis das sete maiores estruturas da FAUL (há 81 estruturas no distrito), Perestrello ganhou com mais de 90%, onde já tinha garantido o apoio dos chefes locais. 
Alguns tinham sido seus colaboradores. 
As votações albanesas registaram-se nas estruturas onde havia maior número de militantes. 
Só nestas seis secções, Marcos Perestrello conseguiu 25% do total dos seus votos.

O que interessa destacar neste caso ― e que serve para tantos outros ― é a importância do controlo dos votos. 
Um candidato que consiga garantir uma votação esmagadora em meia dúzia de estruturas tem a vitória assegurada. 
Em apenas seis mesas, Perestrello obteve 1.018 votos contra 57 de Galamba. 
Mesmo que António Galamba conseguisse resultados mais equilibrados noutras estruturas, seria quase impossível recuperar aqueles 961 votos de desvantagem.

Na Amadora, Perestrello teve 91%, quando anos antes obtivera apenas 18% contra Joaquim Raposo, o influente do concelho, ex-presidente da câmara, com quem disputara a distrital. 
Mas agora Perestrello tinha o apoio de Raposo e fez quase o pleno dos votos. 
Em Olival Basto, concelho de Odivelas, a estrutura era coordenada por Miguel Cabrita (que hoje é secretário de Estado do Emprego) Perestrello teve 98% dos votos. 
Na secção de Odivelas obteve 97% dos votos. 
Um dos dirigentes, Nuno Gaudêncio ― que também presidia à Junta de Freguesia de Odivelas –, tinha sido assessor de Perestrello na Defesa.

A secção de Santo António de Cavaleiros, também no concelho de Odivelas, era coordenada por Jorge Silva, o antigo líder da JS local e assessor na Junta de Freguesia de Odivelas, em cuja secção Perestrello também obteve um resultado quase unânime: 97,8%
Jorge Silva fazia parte do secretariado de Perestrello.

Em Moscavide e Portela, a secção era dominada por uma família: o coordenador da estrutura era Daniel Lima, ex-presidente da Junta de Freguesia de Moscavide; o presidente da mesa da Assembleia de Militantes era o seu filho, Ricardo Lima, que também era vereador na câmara de Loures. 
Perestrello teve 94% dos votos.

Na secção das Águas Livres, no centro de Lisboa, liderada por André Couto, presidente da Junta de Freguesia de Campolide, Perestrello teve 93%. 
O secretário-coordenador da secção justificou o resultado com o facto de ser a secção de residência do candidato, que mantém uma “proximidade grande em relação aos militantes”.
3 - A pirâmide do caciquismo: quotas, arregimentação e empregos
O coração deste organismo é o poder autárquico. 
Quando um partido domina um determinado município, torna-se mais fácil crescer dentro desta lógica, por haver cargos e empregos para distribuir ou a esperança de os obter. Com a fusão das freguesias, que ganharam dimensão e orçamento, os caciques com poder nas juntas aumentaram de importância. 
Se o partido chegar ao Governo, com tantos cargos de assessores e de gabinetes para distribuir, o aparelhismo passa a viver no paraíso.

Para conquistar e manter o poder, o cacique precisa de garantir a lealdade dos seus galopins. 
Podem ser vereadores, funcionários da câmara, presidentes das juntas, simples avençados ou dirigentes partidários da estrutura. 
Há casos em que o galopim tem um emprego na autarquia ou na junta, para obter um rendimento fixo, ter um emprego e tempo livre para tratar de manter a máquina do cacique oleada e a funcionar. 
Tem de fazer militantes às dezenas ou às centenas: entregar fichas a pessoas, recolhê-las e dar entrada dos novos filiados a tempo de votarem nas eleições seguintes, controlando o calendário eleitoral para não dar entrada das fichas com demasiada antecedência e não colocar os adversários de sobreaviso. 
Há aqui sempre um obstáculo a ultrapassar, que são as quotas. 
É preciso angariar dinheiro para as pagar atempadamente, tendo em conta os prazos previstos nos estatutos. 
Isso tanto pode ser feito pelo cacique como pelos galopins, como pode chegar de cima, dos influentes, e tem várias formas de se conseguir.

As quotas são obrigatórias em ambos os partidos e custam 12 euros anuais tanto no PS como no PSD, ou seja, um euro por mês. 
Parece pouco se for considerado em termos individuais, mas as quotas tornam-se pesadas quando os dirigentes têm de providenciar pagamentos em massa, de centenas ou milhares de militantes, que de outro modo não participariam nas eleições internas. 
São 12 mil euros por ano para cada mil militantes e 24 mil se estiverem dois anos sem as pagar, o que acontece muitas vezes.

A verdade é que o dinheiro aparece: empresários da construção civil que fazem trabalhos para a câmara, empresas gráficas que trabalham para o partido, todo o tipo de interesses locais e regionais, mas também verbas do bolso dos próprios candidatos, ou angariadas em iniciativas de recolhas de fundos (como jantares, bailes ou excursões). 
Há fontes conhecedoras dos aparelhos que falam de autarquias que depois sobrefaturam alguns serviços a empresas que assim recuperam o valor que entregaram de forma clandestina aos dirigentes do partido. 
Nestes casos, são os contribuintes que pagam.

Um antigo alto dirigente do PSD, que já pagou muitas quotas e dirigiu processos organizados de cacicagem, diz que há um risco adicional associado à distribuição de dinheiro pelos dirigentes para pagarem a inscrição dos “seus” militantes: não é possível aferir a quantidade de dinheiro que se esvai do sistema diretamente para o bolso dos caciques. 
É um risco que têm de correr. 
Em caso de rapinagem, nada a fazer. 
Impossível fazer queixa. 
Há relatos sobre dirigentes de base que receberam dinheiro para quotas de dois oponentes e que não chegaram a ser consequentes nos apoios prometidos. 
Que fazer nestes casos? 
Nada, a não ser evitar a repetição do erro.

José Pacheco Pereira, que foi líder do PSD/Lisboa entre 1996 e 1998, já nessa época denunciou este modo de funcionamento no livro O Paradoxo do Ornitorrinco, editado em 2007: “Havia nos livros do partido uns milhares de militantes, mas estes não existiam como tal. 
Em cada secção do partido havia 100, 200 inscritos, em que nem 10% frequentavam as sedes e as reuniões e metade destes eram membros da nomenclatura partidária. 
A esmagadora maioria dos membros que aparecia como pagando quota efetivamente não pagava […]. 
O pagamento coletivo de quotas era uma maneira de manter o controlo político de federações ou distritais, ou de inflacionar o número de militantes para garantir mais poder de negociação e mais delegados ao congresso”.


4 - Invenções e falsificações para chegarem a deputados

Pedro Coimbra, que beneficiou da maior fraude eleitoral recente no PS, chegou a deputado e continua no Parlamento

Aquelas 210 páginas guardavam os dados de mais de quatro mil filiados no PSD da Trofa. Estávamos em 2004 e o partido ainda estava no poder. 
Eram listagens enormes: com nomes, moradas, números de telefone e do cartão de militante. 
Tudo somado, eram os dados da maior concelhia social-democrata do país naquela época. Um antigo dirigente do PSD na Trofa, que fez durante anos da cacicagem a sua vida, explica como tudo funcionava: “No âmbito local, ou pelo menos aqui, 95% do tempo a fazer política era passado a cacicar e a gerir a rede”
Um antigo dirigente da JSD recorda-se que os seus companheiros da Trofa desapareciam durante um mês quando lá havia eleições para o partido. 
Para andarem no cacique porta a porta.

No molho de folhas que o antigo dirigente do PSD na Trofa mostra podem ler-se, escritos à mão, os nomes dos vários galopins da sua fação: eram cerca de 20 pessoas com a tarefa de controlar os filiados e de os levar à mesa de voto. 
Mais uma vez, era uma espécie de pirâmide ou de cascata. 
Profissional. 
E cuja eficácia exigia tempo e dedicação. 
Na lista dos cadernos eleitorais, à frente de cada nome, podiam ver-se, escritas pela sua mão, a vermelho, as iniciais de cada controleiro. 
Cada um deles tinha a responsabilidade de pagar as quotas do militante em causa (se já estivessem pagas, o nome seria sublinhado com uma caneta fluorescente), e de o transportar até à urna de voto.

No dia das eleições internas, alguém na mesa ia enviando mensagens por SMS a dizer quem faltava votar, identificando os militantes que era preciso ir buscar a casa. 
Não descansavam enquanto não conseguiam levar os seus à urna. 
A isto chama-se capacidade de mobilização, uma das chaves para o sucesso. 
Nenhum dos inscritos tinha de se preocupar com as despesas. As quotas apareciam pagas. 
Na véspera dos atos eleitorais, as caixas multibanco por toda a Trofa eram tomadas de assalto para procederem à regularização dos pagamentos. 
O processo era tão evidente aos olhos de todos que esses militantes do PSD eram conhecidos na terra como o “gangue do multibanco”.

O chefe de uma das duas fações sociais-democratas fratricidas na Trofa era João Sá, que por via desta influência e poder no partido chegou a deputado, membro do conselho de administração da Assembleia da República e presidente da Comissão de Coordenação Regional do Norte. 
Hoje empresário, foi recentemente detido e constituído arguido na operação “Ajuste Secreto”, que envolveu também Hermínio Loureiro, ex-presidente da câmara de Oliveira de Azeméis e um dos seus grandes amigos. 
Para se perceber como os militantes eram artificiais, a Trofa chegou a ter, nas eleições europeias de 2009, poucos mais votos do que o número de militantes: 4.902 votos livres, num sufrágio universal, para uma lista de filiados que ultrapassava os quatro mil inscritos. Era impossível que na Trofa quase todos os votantes no PSD fossem militantes. 
A certa altura surgiram suspeitas de que houvesse gente a militar ao mesmo tempo no PS e no PSD.

Um social-democrata do norte, velho especialista em manobras de aparelho, diz que “Gondomar, Trofa, Gaia e Famalicão eram fraudes legais”. 
Em Famalicão, por exemplo, os dirigentes do PSD tinham fábricas e faziam dos operários militantes. 
É uma das maiores concelhias do PSD. 
E o presidente da concelhia chegou a ser vogal numa direção de Pedro Passos Coelho.

As disputas pelas distritais são decisivas para as escolhas das listas de candidatos a deputados. 
No PS há guerras antigas mais recentes, em que vale tudo para se conseguir um lugar em São Bento. 
No PS da Guarda, as denúncias de chapeladas foram comuns ao longo de anos. 
José Albano Marques conseguiu estabelecer o seu poder com base no concelho de Celorico da Beira: militantes que desconheciam estar inscritos no partido, denúncias de urnas que mudavam durante os atos eleitorais, e votações de 100% numa candidata (neste caso para a federação das mulheres socialistas). 
José Albano chegou a deputado em 2009, mas não se adaptou ao Parlamento e acabou por ser nomeado diretor do Centro Distrital da Segurança Social da Guarda, o cargo a que verdadeiramente ambicionava.

Mais graves ainda foram as guerras internas do PS de Coimbra. 
Primeiro, em 2010: as quotas de centenas de militantes foram pagas de uma só vez no Largo do Rato por um jovem socialista que tinha 20 mil euros em notas no bolso. Recorreu a amigos para lhe trocarem o numerário por cheques que ia depois entregar ao PS. 
Ambas as partes acusaram a outra de chapeladas. 
Havia militantes com quotas pagas duas vezes, cadernos eleitorais duvidosos, atas rasuradas. 
O deputado Victor Baptista, então presidente da federação, derrotado por dois votos, acusou o chefe de gabinete de Sócrates — André Figueiredo — de lhe oferecer um cargo numa empresa pública para desistir da eleição. 
Este processou-o por difamação, acusando-o de forçar a entrada de militantes com fichas irregulares. 
Uma investigação do Ministério Público deparou-se com testemunhas a dizer que Figueiredo andava a pedir dinheiro a empresários e advogados para pagar quotas. Começou aqui uma saga…

Os derrotados de 2010 ganharam dois anos depois a eleição de Coimbra com métodos ainda mais duvidosos. 
Rebentou então o processo da falsificação de fichas. 
A Judiciária e o Ministério Público detetaram pessoas que não viviam nas moradas registadas e que nunca tinham assinado os documentos de inscrição. 
Um deputado foi constituído arguido. 
Confrontado com o escândalo público, o PS expulsou a militante que denunciou o caso dos falsos militantes. 
O processo de expulsão foi tão arcaico que o Tribunal Constitucional obrigou o PS a reintegrá-la.

Quase duzentas fichas falsas foram identificadas sem dúvidas pelo Ministério Público. Pedro Coimbra, o beneficiário desses esquemas, negou sempre ter conhecimento do que se passava, mas todos os intervenientes eram membros muito próximos da sua direção. 
Pedro Coimbra, líder da Federação eleito através destes esquemas, foi eleito deputado e continua a exercer o seu mandato.

O Ministério Público investigou o caso ao longo de três anos. 
Constituiu cerca de 30 arguidos. 
E pediu ao PS os originais das fichas de todos os militantes do distrito. 
Rui Duarte, que tinha sido líder da JS de Coimbra e liderava a concelhia do partido, viu levantada a sua imunidade parlamentar como deputado para ser constituído arguido por indícios da prática de um crime continuado de falsificação e de “abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer o documento”. 
Rui Duarte sempre negou as acusações, mas na sequência do escândalo não foi candidato a deputado em 2015.

O esquema era o do costume: angariar militantes que votassem na lista em causa e pagar as respetivas quotas. 
Com uma agravante — a das falsificações — que ia para além destas práticas que no interior dos partidos acabam por ser toleradas. 
Depois alguém votaria pelos falsos militantes fazendo-se passar por eles
Os 18 arguidos que foram acusados aceitaram uma suspensão provisória do processo, mediante um acordo com o Ministério Público, que consistia na prestação de trabalho comunitário ou pagamento a instituições de solidariedade de verbas que atingiam os 1.500 euros — caso do ex-deputado Rui Duarte.

É importante perceber um aspeto: os sindicatos de votos, as chapeladas eleitorais e manipulações de cadernos dos partidos não são punidas pelo Código Penal. Ou seja, à luz da lei, vale tudo dentro dos partidos. 
Só os órgãos jurisdicionais dos partidos têm competência para julgar estes casos, mas na maior parte dos casos estão alinhados com uma das fações em disputa. 
A última instância, o Tribunal Constitucional, raramente se pronuncia sobre as matérias de facto, com o argumento de que “não estão esgotados todos os meios de recurso” interno dos partidos. 
O Ministério Público só tenta intervir quando há casos de falsificações de documentos ou assinaturas.

Os deputados indicados pelo aparelho são os que mais depressa se tornam profissionais da política, conclui um livro de Miguel Coelho — Os Partidos Políticos e o Recrutamento do Pessoal Dirigente em Portugal –, também ele deputado e um dos caciques mais experientes do PS de Lisboa. 
O mérito não costuma ser o primeiro critério de escolha para os deputados: quem dominar o maior sindicato de votos tem mais probabilidades de chegar ao Parlamento. 
Se as eleições na base tiverem as cartas marcadas, o que acontece tantas vezes, o deputado senta-se depois no hemiciclo legitimado através de processos internos viciados.

Nas últimas eleições federativas para os distritos no PS, realizadas em 2014 antes da disputa entre António Costa e António José Seguro, apareceram mortos nos cadernos eleitorais de Braga como se estivessem vivos. 
Em Leiria, foram identificados militantes a votar que estavam no estrangeiro no dia das eleições. 
Houve queixas no Ministério Público. 
Resultado? 
Os protagonistas destes casos tornaram-se quase todos deputados.


5 - A operação de caciquismo mais profissional de sempre



Luís Filipe Menezes derrotou Luís Marques Mendes nas diretas do PSD em 2007, com a cacicada mais científica de sempre

Ganhou contra todas as apostas. 
A candidatura de Luís Filipe Menezes à liderança do PSD, em 2007, contra Luís Marques Mendes, investiu na digitalização de um ficheiro com mais de 100 mil militantes. 
Houve suspeitas de espionagem e de subornos a funcionários do partido. 
Se não fosse um ato de pirataria informática, a vitória teria sido impossível: um hacker foi pago para descodificar o algoritmo que gerava os códigos do multibanco para pagar as quotas a milhares de militantes. 
Nunca isto tinha sido realizado a esta escala. 
Todo o processo prova como os partidos são frágeis. 
Deu um novo líder ao PSD. 
Podia ter dado um primeiro-ministro. 
Um dos homens que participou nesta operação diz que, com os partidos neste estado, é possível comprar um primeiro-ministro: ou seja, montar uma campanha com dinheiro, meter militantes em todo o país e cacicar até fazer eleger um homem ao serviço de determinados interesses. 
Exagerado?

Toda a estratégia tinha sido montada sobre o aparelho controlado por Menezes, alimentado e trabalhado ao longo de anos. 
Vila Nova de Gaia era a maior concelhia do País, com mais de quatro mil militantes, fruto do trabalho de arregimentação feito sobretudo ao nível dos presidentes de junta de freguesia. 
Em cima do caciquismo, havia a dimensão do discurso político, que contava mas não garantia os resultados. 
A vitória deveu-se a uma rede bem montada de caciques por todo o país, secção a secção, mas sobretudo a quatro fatores:

1 - À existência de dinheiro para pagar quotas;
2 - À criação de um sistema informático para avaliar a evolução real dos militantes com quotas pagas e a identificação do sentido de voto de cada um;
3 - A alegados subornos a funcionários do partido que passavam informação da secretaria-geral;
4 - À pirataria informática que permitiu quebrar o algoritmo que gerava os códigos de pagamento de quotas pelo multibanco. Mas também a um esforço pessoal de Menezes, que foi capaz, por exemplo, de fazer uma viagem do Minho até ao Algarve ― ao melhor estilo americano ― a telefonar um a um a militantes anónimos, convencendo-os a votar em si.

“O problema é sempre o pagamento de quotas, aí é que a bola pincha”, explicava um dos operacionais da campanha. 
“Tínhamos de arranjar maneira de pagar quotas a toda a nossa gente”, afirma outro dos dirigentes que era dos mais próximos de Menezes.

Com o apoio declarado das maiores secções do PSD, os “menezistas” só precisavam de pôr as rodas da máquina no terreno.
Dominavam as maiores concelhias, como Gaia, Gondomar, Famalicão, Vila Verde e Barcelos. 
Em Lisboa tinham Oeiras e Sintra. 
Com as maiores secções do seu lado, não era determinante o apoio das distritais, o que baralhava as contas dos jornalistas que continuavam a raciocinar numa lógica ultrapassada. 
As tropas de Marques Mendes apostavam na Madeira e nos Açores e de resto só tinham pequenas distritais. 
Aveiro dividiu-se em 50-50, portanto valeu zero. 
Porto, Braga e Lisboa, os distritos que contam, foram para os braços de Menezes. 
Os barões e notáveis, os grandes nomes do partido e os líderes de opinião apareciam ao lado de Marques Mendes, assustados com a vaga possibilidade de Menezes ganhar.

Como a sede nacional, para lhe dificultar a vida — um truque comum — forneceu as listagens de militantes em papel, foi necessário digitalizar essa gigantesca base de dados à mão. 
“Foi um trabalho insano de inserção de dados”, conta um dos responsáveis pelo processo, que fala em centenas de pessoas envolvidas, reunidas num hangar no Porto e num custo financeiro brutal. 
“Foram dias e noites seguidas de trabalho intenso”, confirma outra fonte que acompanhou todo esse trabalho no norte. 
As folhas eram digitalizadas e depois os dados eram corrigidos à mão, por colaboradores, sobretudo das “jotas”, que alguma coisa recebiam. 
Os apoiantes de Lisboa sabiam que isso estava a ser tratado por uma empresa portuense e pouco mais. 
Em menos de uma semana, a base de dados tinha sido digitalizada.
Todos os segundos contavam. 
Agora era preciso pagar as quotas.

A contratação de uma empresa informática do Porto para desenvolver a base de dados foi determinante para Luís Filipe Menezes. 
Quem pagou e com que dinheiro permanece um mistério. 
Uma vez digitalizada, a base de dados permitiu criar o chamado Sistema de Gestão de Militantes (SGM). 
“Foi a campanha mais científica que já se fez em Portugal”, diz um dos responsáveis pela execução do plano. 
Mais uma vez, a organização funcionava numa rede piramidal, ou em cascata, desde a base do partido, ao nível da freguesia e do concelho, até ao vértice: o núcleo duro da campanha para a liderança do partido.

O SGM distinguia três tipos de militantes: os verdes, os vermelhos e os amarelos. 
Com base na informação enviada para o Porto em tempo real de todo o país por cada cacique, era possível perceber quem estava com quem e fazer, a partir daí, uma gestão inteligente dos recursos da campanha. 
Os verdes eram os adquiridos, os militantes já convertidos ou garantidamente controlados pelos galopins afetos aos caciques que apoiavam Luís Filipe Menezes. 
Os vermelhos eram os que estavam com Marques Mendes e com os seus apoiantes e também não valia a pena investir em quem não mudaria o sentido de voto. 
Os amarelos eram aqueles que ainda estavam indecisos, por si próprios ou por via do sindicato que os representava. 
Uma vez definidos os perfis dos militantes, os responsáveis da campanha podiam gerir melhor os recursos. 
Como não valia a pena enviar certo tipo de SMS aos verdes (convertidos) ou aos vermelhos (opositores), concentraram-se os esforços nos amarelos.

O pagamento das quotas acabou por se tornar no tema central da campanha, uma discussão esotérica que dificilmente seria compreendida pela população. 
Era um jogo do gato e do rato. 
Primeiro, Menezes não tinha acesso a esses dados. 
Só havia três formas de realizar os pagamentos: por vale postal, o que não era muito prático e mostrava as cartas ao adversário; por cheque individual, que era ainda menos; e através do multibanco, a forma mais fácil de furar o esquema e de ultrapassar as limitações impostas. 
Problema: na secretaria-geral do PSD, os códigos para o pagamento por multibanco eram gerados informaticamente através de um algoritmo.

Era urgente conseguir os códigos de multibanco gerados a partir do número de militante, através de uma cifra. 
Falou-se em recorrer a Espanha. 
Alguém contactou um hacker em Madrid, que desencriptou o algoritmo por uma pequena fortuna. 
A ação de pirataria informática foi confirmada por cinco fontes próximas de Menezes, que falam em verbas entre os 20 mil e os 30 mil euros para pagar o serviço. 
Também dizem que era “uma cifra de caracacá”, como perceberam depois. 
“Foi uma empresa em Madrid que conseguiu desencriptar os códigos para o multibanco”, confirmou Firmino Pereira, então vereador em Gaia e homem-forte do aparelho menezista na concelhia. 
O programa que gerava o algoritmo seria depois carregado no SGM através da mesma empresa do Porto que geria a base de dados. 
“Sem termos obtido o algoritmo, nunca teríamos ganho as eleições”, garante um antigo menezista que esteve no centro do processo.

“Isso para mim é novidade. Não tenho ideia”, disse Luís Filipe Menezes quando foi confrontado com o tema. “Tem de ser falso. Pessoalmente não conheço nada disso.”

Começaram então os pagamentos massivos de quotas através do multibanco. 
A partir deste momento, o SGM passou também a servir para gerir o pagamento das quotas, militante a militante. 
O Expresso havia de resumir como tinha sido o funcionamento do sistema, uma semana depois de ser conhecido o resultado das diretas: “Com base nesse tratamento homem a homem [através do SGM], a equipa de Gaia foi fazendo projeções de voto e medindo as quotas que teriam de ser pagas para compensar os potenciais votos de Mendes”.

“Foi para mim uma epifania. Aquilo foi o caciquismo global e completo”, chegou a confessar Carlos Reis, que nessa época era presidente da concelhia da Amadora. 
Não era um menino de coro. 
Era ele próprio cacique e galopim. 
Nascido e formado na JSD, tornara-se político profissional do aparelho. 
Pagou nessa eleição centenas de quotas a militantes da sua secção, embora diga que o fez, dessa vez, com dinheiro próprio, cerca de seis mil euros, que nunca mais viu porque alegadamente a candidatura de Menezes nunca lhos pagou.

Começava então uma das fases mais atípicas das lideranças do PSD. 
Sete meses depois de inscrever a liderança do partido no seu currículo, Luís Filipe Menezes demitia-se da presidência do PSD, sem proveito nem glória.


6 - As primárias: um inferno de boas intenções
António Costa e António José Seguro disputaram primárias abertas aos simpatizantes, mas as eleições continuaram a refletir a influência dos caciques locais

Neste terreno da vida interna dos partidos é preciso ter cuidado com as boas intenções. 
Estão condenadas a arder no inferno. 
Os congressos partidários, por serem demasiado elitistas e se resumirem a umas centenas de notáveis e caciques fechados numa sala a escolher o próximo primeiro-ministro, foram substituídos pelas eleições diretas dos militantes. 
Era uma boa intenção, reclamada por aqueles que defendiam mais democracia interna. 
Os congressos tinham defeitos, padeciam de entorses aristocráticas e eram manipuláveis através de uma série de truques e jogadas.

No entanto, as eleições diretas participadas pelos militantes, introduzidas primeiro pelo PS e depois pelo PSD, exponenciaram os defeitos dos congressos. 
O cacique deixou de ter filtro. 
Passou a mandar diretamente nos votos.

Com a constatação dos problemas das diretas, o PS avançou para as primárias abertas a simpatizantes em 2014. 
A intenção era boa, alargar o universo eleitoral com o objetivo de retirar a capacidade de controlo dos votos aos aparelhos e acabar com o espetáculo do pagamento massivo das quotas. 
Se as diretas transformaram os militantes em marionetas dos caciques, as primárias testadas no PS acabaram por potenciar os defeitos das diretas.

As primárias, tal como foram realizadas em setembro de 2014, opondo António José Seguro a António Costa, provaram ser mais uma extensão do aparelho. 
Houve voto livre de cidadãos que sentiram um impulso para participar na escolha do candidato do PS a primeiro-ministro. 
Mas os resultados foram em grande medida aquilo que os dirigentes conseguiram fabricar com a adaptação das técnicas da galopinagem à nova realidade.

Os números eram esmagadores: 250 mil inscritos nos cadernos eleitorais, que antes de darem o nome tinham de dizer que se reviam nos princípios que norteavam o Partido Socialista. 
Uma análise aos números cruzada com depoimentos de alguns dirigentes socialistas permite concluir que a pureza das primárias também está inquinada.

É possível perceber como as primárias são uma emanação do aparelho partidário: as votações dos simpatizantes coincidem com os alinhamentos internos dos caciques locais. 
Um exemplo: a Trofa. 
A cacique local, Joana Lima (hoje deputada), estava alinhada com António José Seguro e explicava: “Isto trata-se de angariar, chamar pessoas conhecidas e pedir ajuda em todo o lado. Se disserem o contrário é mentira. Todos sabemos como isto funciona”. 
Seguro teve 70% na Trofa, uma inversão dos resultados nacionais.

Os resultados nacionais foram de 68% para Costa e 32% para Seguro. 
Mas, em cada localidade, os valores tornavam-se exponenciais para cada um dos lados tendo em conta a intensidade do trabalho dos caciques. 
Como perdeu as eleições com uma diferença significativa, analisar os locais onde Seguro ganhou permite perceber melhor a nova realidade dos sindicatos de voto mesmo nas primárias abertas a simpatizantes.

O mesmo aconteceu em Baião, onde o influente era José Luís Carneiro, líder da federação do PS e hoje secretário de Estado das Comunidades. 
Aqui Seguro teve 88,9% nas primárias, mais um resultado radicalmente diferente do resultado nacional, fruto do trabalho dos galopins locais. 
No já referido concelho de Celorico de Basto — para onde os representantes de António Costa levaram seguranças profissionais para as mesas de voto –, Seguro teve 86,9%, também à revelia do resultado nacional.

Em Resende repetiu-se a história. 
O líder da federação de Viseu, António Borges, ex-presidente daquela câmara, era um apoiante de António José Seguro. 
Já tivera uma assinalável mobilização de militantes para votar nas eleições federativas, mas multiplicou-os por três nas primárias, oferecendo a Seguro uma votação de 89% naquele concelho.

Em sentido contrário, do lado de António Costa também se verificaram muitos casos em que os resultados das primárias não permitem classificá-las como um hino à participação livre dos cidadãos na vida dos partidos, conforme o discurso oficial. 
Os exemplos multiplicaram-se por todo o país: Lisboa, Porto ou Setúbal.

A legitimidade obtida com as primárias parece maior do que a escolha através de congressos ou de eleições diretas. 
O problema é que a lógica e os processos são semelhantes. 
Só muda a escala. 
Com um elemento facilitador que poupa trabalhos: não é preciso pagar quotas nem violar estatutos para pôr as pessoas a votar. 
Os aparelhos partidários são como os moluscos, adaptam-se às irregularidades do meio ambiente, mudam ligeiramente de tonalidade quando é preciso, sabem camuflar-se e, se for preciso, deitam tinta para os olhos dos outros quando atacados. 
Precisam de sobreviver e sobrevivem porque têm meios para isso. São profissionais e vão aperfeiçoar os métodos se o sistema das primárias se consolidar.

As primárias comportam um grau muito maior de incerteza para os aparelhistas, mas, como se percebe por estes dados, uma organização bem montada com base no poder autárquico e nas redes estabelecidas consegue obter um grau assinalável de controlo sobre os resultados nacionais. 
Pouco muda. 
Como esta foi apenas a primeira experiência de primárias, os aparelhos, da próxima vez, estarão mais aptos para reagir e mimetizar os processos que já usavam nas diretas, massificando a cacicagem. 
No PSD já há quem peça primárias. 
Miguel Relvas foi o primeiro a falar nisso.

Vítor Matos é autor do livro “Os Predadores” (Clube do Autor), sobre o caciquismo no PS e no PSD, e este texto é uma adaptação de partes do livro.