segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Embaixador russo em Ancara assassinado. Atirador grita por Alepo

PÚBLICO
CLARA BARATA e JOÃO RUELA RIBEIRO
19 de Dezembro de 2016, 16:29 actualizada às 18:19



O embaixador russo na Turquia, Andrei Karlov, foi assassinado esta segunda-feira quando estava numa galeria de arte em Ancara, confirmou o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo. 
O atacante, um polícia à civil, fez um discurso sobre a guerra na Síria, em que falou de Alepo, e foi "neutralizado" - baleado por outros polícias.

O Presidente turco, Recep Taiyyp Erdogan, já falou ao telefone com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, diz a agência Reuters.

Moscovo diz que o homicídio do seu embaixador em Ancara vai ser tratado como um caso de "terrorismo". 
O Conselho da Federação Russa considerou este incidente como "uma grave falha do sistema de segurança turco, adianta a agência noticiosa russa Interfax.

O ataque ocorreu enquanto Karlov fazia um discurso na inauguração de uma exposição de fotografia na galeria, que é próxima da embaixada dos Estados Unidos. 
O atacante disparou um tiro para o ar, baleou o embaixador pelas costas e ainda feriu mais três pessoas, de acordo com o canal NTV. 
Segundo a agência Tass russa, o atirador seria um dos milhares de funcionários públicos despedidos após o golpe de Estado falhado de 15 de Julho na Turquia

Moscovo diz que o homicídio do seu embaixador em Ancara vai ser tratado como um caso de "terrorismo". 
O Conselho da Federação Russa considerou este incidente como "uma grave falha do sistema de segurança turco, adianta a agência noticiosa russa Interfax.
Andrei Karlov com Vladimir Putin, em Outubro, no aeroporto de Istambul



Os serviços de segurança turcos dizem que o homem era um membro das forças especiais da polícia que trabalhava em Ancara, mas não se encontrava de serviço no momento do atentado. 
Terá sido por ter mostrado um cartão de identificação da polícia que lhe foi dado acesso à inauguração, segundo os jornais locais. 
Os media turcos mostram imagens desse cartão, que o identifica como Mert Altintas.

















A embaixada russa diz suspeitar que o ataque tenha sido levado a cabo por um radical islamista, mas não foram dados mais pormenores sobre a sua identidade, nem o ataque reivindicado. 
Nas redes sociais, no entanto, tanto as contas ligadas à Al-Qaeda como ao Daesh celebram o assassínio, diz no Twitter Rita Katz, directora do SITE Intelligence Group, uma organização que monitoriza a actuação online de grupos terroristas.

Um vídeo mostra o momento em que o atirador atinge o embaixador com vários tiros nas costas e, em turco, faz referências a Alepo e ao Presidente sírio, Bashar al-Assad. 
"Não se esqueçam de Alepo, não se esqueçam da Síria", terá sido uma das frases que o homem gritou, segundo a BBC.
O porta-voz das Nações Unidas, Stephan Dujarric, condenou o homicídio de Karlov. 
"Não há justificação para um ataque contra um diplomata ou um embaixador", afirmou. 
Também o Departamento de Estado norte-americano condenou o ataque. 
O regime de Damasco também expressou a sua condenação.

Para terça-feira estava marcado um encontro em Moscovo entre o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Cavusoglu, e os seus homólgos russo e iraniano para discutir a situação na Síria - que deverá continuar na agenda.

A Rússia e a Turquia reaproximaram-se nos últimos meses, depois de as relações entre os dois países se terem degradado, especialmente depois de, em Novembro do ano passado, a Turquia ter abatido um caça russo enquanto sobrevoava a Síria.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Beppe Grillo. No final da piada, vem a vitória eleitoral?

João de Almeida Dias
03 Dezembro 2016
Itália vai a referendo este domingo e o primeiro-ministro Matteo Renzi prometeu demitir-se se perder, abrindo o caminho a Beppe Grillo. 

Quem é o comediante que manda os adversários "vaffanculo"?

Num certo ano de 2016, um britânico, um espanhol, um americano, um francês de direita e um italiano vão às urnas. 
O britânico decide sair de um clube onde nunca foi verdadeiramente feliz; o espanhol não sabe bem onde votar e acaba por esperar quase um ano para saber quem é que afinal de contas manda na terra dele; o americano escolhe um homem com um penteado duvidoso e ideias polémicas, que faz o resto do mundo franzir um sobrolho coletivo; o francês de direita fica-se por um indivíduo que é tão, mas tão de direita, que só ele pode roubar votos à senhora da extrema-direita.

E o italiano? 
O italiano vai a votos num referendo onde está em causa a reformulação de um terço da Constituição, depois de o primeiro-ministro ter dito que isso tudo tornaria o país mais estável. 
Só que, no final, tudo isto pode ser abalado por outro homem que começou por ganhar a vida como comediante, logo se tornou num político anti-partidos e que, acima de tudo, não tem qualquer preocupação com a estabilidade política do país.

A piada faz-se sozinha — mas mesmo que assim não fosse, Beppe Grillo faria toda a questão de ser o seu autor. 
Como aconteceu numa entrevista que deu ao The New York Times, nos idos de 2013. Pouco antes, o seu partido, o eurocético e ideologicamente ambíguo Movimento Cinco Estrelas, tinha acabado de conquistar 25,5% dos votos, tornando-se no maior partido da oposição na Câmara dos Deputados e assim ser a possível chave para desbloquear a formação de um Governo do Partido Democrático. 
Quando lhe perguntaram se iria permitir estabilidade ao Governo que se seguiria, disse que essa hipótese era “inadmissível”. 
E depois recorreu à metáfora, recurso estilístico recorrente na comédia: “Seria como Napoleão fazer um um acordo com Wellington”.

Ora, Wellington, neste momento, é Matteo Renzi — só que nada garante que, tal como o primeiro fez em Waterloo, o primeiro-ministro italiano saia vitorioso da batalha deste domingo. 
Num esforço para pôr um fim à tradição enraizada em Itália de os governos serem curtos e ineficazes — nos últimos 70 anos, Itália teve 63 governos —, o primeiro-ministro e líder do Partido Democrático promoveu um conjunto de reformas constitucionais que acredita serem o antídoto ao atual problema.
Matteo Renzi disse que se demitia se perder o referendo — abrindo o caminho para Beppe Grillo chegar a primeiro-ministro após novas eleições

Entre as medidas propostas por Matteo Renzi, está a redução do Senado, dos atuais 315 membros para apenas 100. 
Além disso, os seus membros não seriam eleitos diretamente, mas antes pelas assembleias regionais. 
Na prática, o Senado deixaria de ter o atual peso que tem no sistema político italiano — tem o mesmo poder da Câmara dos Deputados. 
No atual sistema, todas as leis só são aprovadas quando contam com a aprovação das duas câmaras — um processo não raras vezes longo e demorado.

Outro ponto importante na reforma defendida por Matteo Renzi é a possibilidade de o partido que surja com mais de 40% dos votos ter automaticamente uma maioria de 55% na Câmara dos Deputados. 
E, se os 40% não forem atingidos numa primeira votação, as duas listas mais votadas vão a uma segunda volta para determinar quem ficará em maioria absoluta.

O plano de Matteo Renzi passou o teste do parlamento — mas sem distinção. 
Após ter conseguido a aprovação da maioria, mas não de dois terços, a proposta passou para as mãos dos italianos. 
E, pelo meio, Renzi pôs a cabeça no cepo e disse que se demitiria caso o “Não” venha a vencer este domingo. 
“Se os cidadãos votarem ‘Não’ e quiserem um sistema decrépito que não funciona, não vou ser eu quem vai negociar com os outros partidos um Governo de gestão”, disse o primeiro-ministro italiano numa entrevista à RTL em novembro. 
Com efeito, o referendo passou a tomar um significado que até então não tinha. 
Agora, para além de uma consulta popular sobre alterações à Constituição, a votação deste domingo é um referendo ao próprio Matteo Renzi.

Se o futuro do primeiro-ministro italiano depender do que dizem as sondagens, então a conta dos 63 governos em 70 anos terá de ser atualizada. 
É que, segundo os últimos estudos de opinião, entre aqueles que dizem que vão às urnas no domingo o “Sim” deverá perder com cerca de 48% dos votos e o “Não” sairá por cima com aproximadamente 52%.






















E, assim sendo, há dois vencedores no domingo: o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que aos 80 anos, e depois de estar prestes a afogar-se num mar de escândalos parece continuar à tona, liderando o Forza Italia; e acima de tudo Beppe Grillo, o homem que há cerca de uma década iniciou a sua improvável caminhada até às mais altas esferas da política italiana sob um lema que, entre as hostes do Movimento Cinco Estrelas, costuma ser acompanhada com o dedo do meio levantado: “Vaffanculo!“.

Agora, com as sondagens do referendo a seu favor e também as de umas eventuais eleições em Itália a colocarem-no ombro-a-ombro com Matteo Renzi, uma subida de Beppe Grillo e dos grillistas ao poder parece ser uma hipótese cada vez mais provável — e, com isso, a realização de um já prometido referendo à permanência da Itália no euro.
Um Italexit — depois do Grexit (nunca concretizado) e do Brexit (a caminho de ser aplicado), já entrou para a lista de receios dos mercados — seria a mais estrondosa punchline de qualquer piada que terá passado pela cabeça do líder do Movimento Cinco Estrelas.

O contabilista que deu em comediante

Se tivesse feito a vontade ao pai, Beppe Grillo teria sido um contabilista discreto e não um comediante.
Quando era pequeno, tinha o hábito de interromper as refeições familiares cantando num vai-vem de notas graves e outras agudas.
“O Beppe cantava ou pegava na sua guitarra e soltava uivos como o James Brown”, contou Andrea, irmão de Beppe Grillo, à New Yorker.
“O nosso pai dizia ‘ele parece um animal!'”, recordou, em 2013.
Outra vezes, aparecia à mesa com uns óculos escuros e imitava Ray Charles.
O pai, Enrico, apesar de no seu íntimo achar piada ao filho, comentava com a mulher: “O teu filho é um parvo.
Olha para as parvoíces que ele faz enquanto devia andar a estudar”.

A família Grillo vivia na cidade portuária de Génova, num bairro de classe média-baixa. Enrico Grillo era dono de uma pequena empresa que fabricava tochas para uso industrial. Quando chegou a altura de ir para a universidade, Beppe Grillo foi encorajado pelo pai para estudar contabilidade.
A ideia era ir trabalhar para a empresa do pai — algo que fez durante três anos, até sair em 1971, depois de ter confirmado que não era aquilo que queria para a sua vida.

O que Beppe Grillo queria mesmo era fazer comédia.
Já quando era adolescente ganhava alguns trocos em espetáculos ao vivo.
Tinha começado como músico, mas era nos intervalos entre as músicas que o público o recebia com melhor cara, rindo-se das suas piadas circunstanciais.
Gradualmente, começou a largar a guitarra e agarrou-se às piadas.

Foi a elas que regressou, depois de sair da empresa do pai.
Primeiro em part-time, enquanto pagava as contas com um emprego como vendedor de calças de ganga.
Depois, a tempo inteiro, quando foi despedido.
Assim que soube que os seus serviços já não eram necessários, foi de comboio até Milão, onde começou a fazer sessões de comédia em bares.
Pouco depois de ter chegado, conseguiu uma audição com um diretor da RAI, a televisão pública italiana.

A partir daí, Beppe Grillo passou a ser uma figura assídua nas salas-de-estar transalpinas. Começou por fazer piadas nos intervalos de segmentos de alguns programas, depois passou por dois programas de viagens, um nos EUA e outro no Brasil, onde dava a conhecer os países sempre pelo prisma do humor.

Já nos anos 80, o seu humor começou a ficar um pouco mais sério.
“Os seus espetáculos começaram a ser cada vez mais cáusticos, ele atacava assuntos mais quentes, fossem eles sociais ou políticos, causando arrepios na espinha dos vários diretores de televisão que, apesar do ‘risco’, continuavam a convidá-lo para os seus programas”, lê-se na pequena nota biográfica no site oficial de Beppe Grillo.

Em 1986, depois de uma rábula televisiva em que fazia humor com as suspeitas de corrupção em torno do primeiro-ministro — o socialista Bettino Craxi, que acabou por ser mesmo condenado por corrupção no âmbito do caso Mãos Limpas, o que o levou a fugir para a Tunísia, onde morreu em 2000 —, foi afastado da televisão pública.
Só em 1994, um ano depois da demissão de Bettino Craxi, é que voltou permanentemente à RAI.
Eram poucos os italianos que não o conheciam.

Naquela altura, Beppe Grillo já não era um simples comediante — era cada vez mais um ativista.
Apesar de ter começado a prestar atenção à causa da ecologia, foi a corrupção que continuou a merecer a grande parte dos seus esforços.
Em 1993, numa intervenção num programa de televisão, denunciou 22 pessoas que estavam a usar a SIP (empresa de telecomunicações estatal italiana à altura) num esquema de transferência de dinheiro para contas no estrangeiro.
Tudo isto, por intermédio de chamadas para linhas de astrologia e eróticas.
A denúncia levou Agostino Cordova, um procurador, a contactá-lo.
Queria saber como é que ele tinha chegado àquela informação.
“Eu disse ao Cordova: ‘Bom, eu descobri isto porque as empresas estão cotadas na bolsa e os seus documentos são domínio público.
Não é que se tenha de fazer qualquer coisa de inacreditável para consegui-los'”, recordou Beppe Grillo à New Yorker.

Na década seguinte também voltou a ajudar as autoridades, quando se deu o caso da Parmalat, palco de um esquema de fraude financeira.
Depois de de ter recorrido aos seus conhecimentos de contabilidade, costumava dizer que tinha previsto a falência que viria a marcar indelevelmente aquela empresa.
Num espetáculo num teatro em 2002, bem antes de os rumores em torno da Parmalat se terem espalhado, Beppe Grillo disse ao público que um executivo daquela empresa lhe falou concretamente do estado das suas contas.
“Num país normal, a empresa colapsava, ia à bancarrota”, disse.
Um vídeo do momento chegou às televisões e a história cresceu a partir de então.

Em 2004, foi interrogado pelas autoridades como “pessoa conhecedora dos factos” no caso Parmalat. ~
À saída de uma sessão, disse aos jornalistas: “Eu repeti o que tenho dito nos meus espetáculos há já algum tempo.
São coisas que eu digo há anos que estavam nas bocas de toda a gente.
A Parmalat é um deboche, mas isto é apenas a ponta de um iceberg enorme”.
E depois, num gesto que viria a repetir cada vez mais, atirou uma farpa aos jornalistas que tinha à frente e não só: “Mas a verdadeira catástrofe é a informação.
É mau que estas coisas sejam conhecidas por nós, comediantes, e não pela imprensa, que só chegou depois”.

Depois de uma carreira a aproveitar-se da política para fazer comédia, Beppe Grillo era agora um homem que se servia do palco que a comédia lhe dava para fazer política.
Em 2005 fundou o seu blogue, que chegou a ser o oitavo mais lido do mundo.
Um dia, publicou a lista de deputados que tinham sido condenados por vários crimes. Depois, tentou publicá-la nos jornais italianos, que responderam negativamente.
De seguida, Beppe Grillo recolheu fundos junto dos seus seguidores e no dia 22 de novembro de 2005 comprou uma página inteira no International Herald Tribune, a versão europeia do The New York Times.
Além da sua fotografia e do título “Limpar o parlamento!”, Beppe Grillo remetia para o seu blogue, onde a lista de 23 deputados condenados podia ser consultada.
No fundo, lia-se a seguinte assinatura: “Beppe Grillo e milhares de cidadãos italianos”.

Esta era a fase em que Beppe Grillo era conhecido pelos seus espetáculos que, na verdade, eram manifestações. 
Era político, mas não se assumia de esquerda nem de direita, colocando-se a caminho de apanhar tantos apoiantes quantos estivessem no caminho. 
Era pela “decência”, pelo “bom senso” e sobretudo populista. 
O auge disto tudo foi em 2008, quando a 8 de setembro convocou várias cidades a celebrarem o V-Day. 
V, de vaffanculo. 
“Nós somos parte de um novo Woodstock!”, bradou à multidão.
“Só que desta vez os drogados e os filhos da mãe estão do outro lado!”

Nasce o Movimento Cinco Estrelas, com o dedo do meio levantado contra a “casta”

Em 2009, sem grande surpresa, Beppe Grillo avançou para a formação do Movimento Cinco Estrelas.
Com génese na Internet, o partido anti-partidos de Beppe Grillo assentava em cinco princípios: a proteção do ambiente, a manutenção de bens como a água no setor público, tornar o acesso à Internet num direito fundamental e promover a criação e manutenção de um sistema de transportes sustentável.
Mas, a julgar pelas intervenções de Beppe Grillo e da sua crescente entourage, bastava mesmo uma palavra: vaffanculo, claro.
Sempre para aqueles que eram a cara do poder e que mereceram o epíteto de “casta”.

Os vaffanculo eram dados de várias maneiras.
Uma das mais criativas foi em resposta aos planos do Partido Democrático de construir uma ponte entre a parte continental de Itália e a ilha da Sicília, separados apenas por três quilómetros de mar, conhecidos como Estreito de Messina.
Em outubro de 2012, provar a sua opinião de que a ponte era desnecessária — e também para lançar a sua campanha às eleições legislativas, que seriam em fevereiro de 2013 —, Beppe Grillo cercou-se de pequenos barcos cheios de apoiantes e atravessou o estreito a nado.
No final da empreitada, que demorou quase uma hora a ser concluída, disse: “Os corretores de apostas estavam a cotar-me em 15 para 1, estavam todos à espera de que eu tivesse um ataque de coração a meio do caminho”.
Na altura, o primeiro-ministro de Itália era o discreto tecnocrata Mario Monti — cujo estilo calmo e pouco entusiasmante levou a que Beppe Grillo o chamasse de Rigor Montis.
Nas eleições de 2013, o Movimento Cinco Estrelas apresentou-se às eleições de uma maneira nunca antes vista em Itália. 
Os candidatos a deputados, que concorriam sob condição de já viverem nos círculos eleitorais onde viviam à altura da campanha, eram escolhidos através de votações online. Além disso, não podiam ter cadastro criminal nem um passado partidário e teriam de renunciar a privilégios como carro e motorista. 
E no final de cada mês, parte dos seus salários seria destinada a um fundo para ajudar pequenas e médias empresas.

Estas foram as eleições em que, para gáudio do populista Beppe Grillo e dos grillistas, o Movimento Cinco Estrelas conseguiu a representatividade que lhe faltava. 
Apesar da vitória do Partido Democrático, o partido do comediante passou a ser o maior partido na Câmara dos Deputados. 
Ali, o Partido Democrático, liderado por Pier Luigi Bersani, estava em maioria absoluta. 
Mas no Senado já não. 
Para conseguir formar Governo, o líder do centro-esquerda estendeu a mão ao Movimento Cinco Estrelas — sem efeito. 
Pier Luigi Bersani viria a desistir e a entregar o mandato a Enrico Letta, que fez uma grande coligação ao centro. 
Era abril de 2013.

Ora, a 22 de fevereiro de 2014, nem um ano depois, após um tumulto no centro-esquerda e no Partido Democrático, Matteo Renzi desafia Enrico Letta, que acaba por se demitir e ceder-lhe o lugar. 
Desde então que o ex-presidente da câmara de Florença é o centro-esquerdista que há mais tempo se mantém no cargo de primeiro-ministro desde… Bettino Craxi. 
Isso mesmo, o homem que foi alvo das piadas de Beppe Grillo nos anos 1980 e que morreu no exílio na Tunísia.

Desde então, o Movimento Cinco Estrelas consolidou-se enquanto elemento da política italiana, apesar dos vários precalços. 
Desde 2013, um total de 18 dos seus 109 representantes na Câmara dos Deputados (ou seja, 17%) saíram do seu grupo parlamentar e juntaram-se a outras forças. 
Apesar de os defensores do Movimento Cinco Estrelas terem descrito o partido como uma organização horizontal e criada nos princípios da democracia direta, houve muitos que saíram das suas fileiras perante a sobreposição de Beppe Grillo em relação a todos os que o rodeiam. 
E em Roma, onde o Movimento Cinco Estrelas venceu as eleições autárquicas este ano, o mandato de Virginia Raggi tem sido uma coleção de polémicas e passos em falso.

Depois do referendo, o futuro será estranho e imprevisível

Agora, com o referendo deste domingo, Beppe Grillo espera roubar o lugar a Matteo Renzi no Palazzo Chigi. 
Para já, no ano do Brexit — sobre o qual Beppe Grillo disse que “a União Europeia deve mudar ou então morre” — e de Donald Trump — cuja vitória o comediante de Génova disse querer “dizer que os milhões de demagagogos não são as pessoas, mas sim os jornalistas e os intelectuais, presos a um mundo que já não existe” —, o Movimento Cinco Estrelas já teve duas conquistas simbólicas contra o Partido Democrático, retirando-lhe as autarquias de Roma (a capital) e de Turim (um bastião socialista). 
A fechar, pode estar uma vitória do “Não ” no referendo.

E o que é que virá com o advento do “Não”? 
E, mais importante ainda, o que é que Beppe Grillo e os grillistas poderão retirar daí?

A resposta não é clara.

Caso vença o “Não” e Matteo Renzi honre a sua palavra demitindo-se, há dois cenários possíveis. 
O primeiro consiste na nomeação de um Governo de gestão, que atuará até às eleições legislativas, que terão de acontecer até ao dia 23 de maio. 
O segundo cenário seria o Presidente, Sergio Mattarella, dissolver a assembleia e convocar eleições antecipadas.

Se assim for, Beppe Grillo terá razões para rir — mas não às gargalhadas. 
Se, por um lado, teria nova hipótese de concorrer a umas novas eleições no pico da sua forma — que seria em grande parte fortalecida por vencer um referendo contra a “casta”, como os grillistas chamam a quem tem poder —, muito dificilmente o comediante genovês teria um resultado claro o suficiente para torná-lo primeiro-ministro, mesmo vencendo as eleições. 
Formar uma maioria com o atual sistema é um feito longínquo e Beppe Grillo teria enormes dificuldades para receber a ajuda daqueles a que tem gritado “vaffanculo!“.

É, pois, inesperado, que Beppe Grillo seja hoje a favor de um sistema que dificilmente o favorecerá. 
E igualmente paradoxal é o facto de o sistema a que ele se opõe — e que Matteo Renzi defende neste referendo — ser possivelmente o que melhor se encaixa nas aspirações de poder do populista. 
Bastar-lhe-ia ter 40% dos votos para conseguir uma maioria absoluta na Câmara dos Deputados — o suficiente para governar, com um Senado fraco e pouco mais do que decorativo.

A ironia é sublime — e Matteo Renzi pode vir a ser alvo da punchline da piada deste referendo e de Beppe Grillo. 
“[Matteo Renzi] pode ter sido ingénuo, mas também pode ter gostado da ideia de um primeiro-ministro todo-poderoso com ele sentado firmemente no Palácio Chigi. 
Mas será que ele esquece que pode perder? 
E não terá ele percebido que ele pode perder ao ganhar?”, escreve Silvia Mazzini, professora de Filosofia Política na Universidade de Humboldt, em Berlim, no site da Al Jazeera. 
“Se esta reforma constitucional for aceite, o vencedor das próximas eleições não terá necessariamente o nome Matteo Renzi, mas por exemplo (e neste momento isso parece ser mais realista) pode ser Beppe Grillo.”

Os dias que se seguem parecem difíceis de descortinar. 
Seja como for, Beppe Grillo deverá manter a frase que disse num comício em agosto: “Hoje em dia, dizer ‘Não’ é uma das maneiras mais bonitas e gloriosas de fazer política. 
E quem não o entender, vaffanculo!”.

Itália, os populismos e a arrogância das elites

José Manuel Fernandes
5/12/2016, 16:38

Renzi perdeu o referendo, e perdeu bem: uma reforma constitucional era errada e perigosa.

Só uma cegueira e arrogância das elites europeias permitiu que a derrota se visse apenas uma vitória populista


Primeiro que tudo, absoluta claridade: se tivesse podido votar no referendo italiano, votaria “não” sem qualquer hesitação. 
Ou estado de espírito. 
E fá-lo-ia porque a reforma proposta pelo primeiro-ministro demissionário Matteo Renzi é uma reforma errada e, no caso italiano, perigosa. 
Muito perigosa mesmo.

O que é extraordinário em todo o psicodrama que se criou em torno desta consulta eleitoral é que enquanto os jornais, as rádios e as televisões se enchiam de previsões catastrofistas sobre as consequências de um “não”, poucos ou quase nenhuns se preocuparam em explicar o que estava em causa, o que ia ser votado, quais os argumentos a favor e contra. O guião foi sempre o mesmo: de um lado, um Renzi europeísta; do outro, um bando de populistas. 
Poucos se interrogaram sobre o porquê de figuras como Mario Monti irem votar “não” – essa “dissidência” não encaixa no guião do momento, em que tudo o que sai da norma é de imediato catalogado como “populista” ou mesmo de “extrema-direita”.

O Financial Times, essa bíblia da elite europeia, escrevia aqui há uns dias que “os eleitores são hoje o elo fraco da Europa”. 
É uma formulação verdadeiramente extraordinária, pois coloca o mundo de pernas para o ar. 
O elo fraco da Europa é a própria Europa, ou mais exactamente uma União Europeia construída de forma pouco democrática, para não dizer quase autocrática. 
Ora uma Europa onde as elites têm medo dos cidadãos não é muito diferente da França da corte de Luís XVI, a quem a plebe horrorizava – é uma Europa surda à realidade, autista na sua autosuficiência.

É por isso necessário saber separar o trigo do joio, e podemos começar precisamente por Itália e pelo seu referendo. 
Eu votaria “não” porque – tal com os editorialistas da The Economist e do The Observer, para citar dois jornais de orientações diferentes – penso que, primeiro, a Itália precisa sobretudo de reformas económicas; e, depois, que a solução para os bloqueios do sistema político italiano não passavam por alterações constitucionais que davam excessivo poder ao primeiro-ministro e ao seu partido.

Em Itália os governos são pouco estáveis? 
São: vamos para o 63.º executivo em 70 anos. 
Mas durante muitas décadas a Itália funcionou e cresceu mesmo com essa instabilidade governativa. 
Pior, bem pior, era a corrupção endémica, mas essa sofreu um rude golpe com a operação “Mãos Limpas”, que limpou o sistema político e transformou o mapa partidário. 
Mais: a instabilidade governativa é filha do cuidado que os autores da Constituição italiana tiveram para evitar uma excessiva concentração de poderes, pois a memória dos tempos de Mussolini estava bem fresca.

A reforma constitucional que Matteo Renzi propunha não se limitava a reequilibrar um regime constitucional que, passados 70 anos, pode precisar de um ajuste: subvertia literalmente o sistema de pesos e contrapesos que limitam o poder do executivo. Conjugada com a lei eleitoral que daria um enorme bónus eleitoral ao partido mais votado, permitiria que uma força política com o apoio de um terço do eleitorado ou pouco mais pudesse ter uma maioria absoluta na câmara baixa do Parlamento ao mesmo tempo que a câmara alta passava a ter um poder quase decorativo, como o que já hoje tem o Presidente da República, e com as regiões perderem também prerrogativas.

Não deixa de ser paradoxal que um primeiro-ministro que chegou ao poder através de uma viragem orquestrada no interior do seu próprio partido tenha querido criar um sistema próximo de uma “ditadura de primeiro-ministro”. 
Tal como é significativo que, ao mesmo tempo, o Renzi “reformista” tenha há muito estava desaparecido em combate, aparecendo agora a adoptar políticas populistas – isso mesmo: populistas – destinadas a tentar recuperar apoio popular a tempo de ganhar o referendo. Perdeu a sua aposta, e perdeu de forma clamorosa. 
E felizmente que perdeu agora, pois era pior – digo eu hoje por hoje, com aquilo que hoje se sabe – que perdesse daqui por uns tempos, em próximas eleições e para um Movimento 5 Estrelas em alta nas sondagens.

O equilíbrio de poderes é um dos aspectos mais sensíveis de uma arquitectura democrática, sendo que a democracia é o regime do governo limitado pela lei e por outros poderes que o fiscalizam e controlam. 
Não é o regime do chefe referendado em eleições, por mais livres e justas que estas sejam.

Escreveu-se assim direito por linhas tortas – isto é, evitou-se um mal maior através de um mecanismo referendário, o tal que por definição é susceptível de ser deturpado por argumentos populistas.

Mas não me fico por aqui. 
A derrota das elites europeias neste referendo, tal como a sua derrota no referendo do Brexit, não teve como consequência a catástrofe económica que logo se abateria sobre os povos mal comportados e, por arrasto, todos nós. 
A economia do Reino Unido continua a comportar-se melhor do que a da zona euro e, sendo ainda cedo para perceber o que se vai passar em Itália, no dia a seguir ao referendo não houve nenhuma reacção de pânico.

É pois altura de serenar e procurar separar o trigo do joio. 
O populismo é, não se tenha dúvida, um “espectro que paira sobre a Europa”, como notava recentemente o Journal of Democracy, mas não podemos cair da tentação de os enfiar todos nos mesmo saco, de os tratar todos da mesma forma. 
Pode ser muito conveniente para os que condenam qualquer desvio à ortodoxia europeísta, mas a verdade é que não existem diferentes tipos de populismos (nesse mesmo número do Journal of Democracy há mesmo um interessante ensaio do cientista político grego Takis S. Pappas a esse propósito), como há sólidos argumentos democráticos entre os cépticos da construção europeia.

Há muitos anos que venho defendendo a necessidade de as elites europeias escutarem com humildade a mensagem que lhes está a ser enviada pelos eleitorados. 
Mais: como a imprensa dos Estados Unidos parece começar a reconhecer, é igualmente importante que os jornalistas deixem de circular apenas entre essas elites e procurem ir ao encontro dos que não se sentem representados pelos actuais sistemas políticos – algo que só depois do choque da eleição de Donald Trump alguns parecem dispostos a fazer.

Ora o que continuo a notar é o contrário. 
No dia em que o candidato a direita radical austríaca recolhe 47% dos votos numa eleição presidencial, deitam-se foguetes e há mesmo quem titule que a “maré” está a virar. 
Esta cegueira é inquietante pois não permite perceber o que levou eleitores tradicionais, de décadas, dos sociais-democratas e dos cristãos-democratas, a votarem no candidato do FPÖ. 
Ou a não entenderem que a eleição de Alexander Van der Bellen, o candidato “verde”, não se deve ao seu “cosmopolitismo” europeísta, antes a um voto contra Norbert Hofer. 
Os sentimentos que sustentaram o crescimento do FPÖ não desapareceram de um dia para o outro e haverá um preço elevado a pagar se não o percebermos.

De resto, repito, falar de “populismos” começa a ser a forma mais confortável de certas elites europeias fazerem ouvidos moucos às preocupações reais dos eleitorados.

Matteo Renzi diz que vai demitir-se às 17h, depois de Orçamento ter sido aprovado

Edgar Caetano
7/12/2016, 14:56

Primeiro-ministro Matteo Renzi diz que vai demitir-se, como era esperado, agora que o Orçamento do Estado para 2017 foi aprovado no Parlamento italiano.


Matteo Renzi vai apresentar uma demissão às 17h desta quarta-feira, como era esperado, na sequência da aprovação parlamentar do Orçamento do Estado para 2017.

Uma informação foi avançada pela RadioCor, mas diversas agências como uma Associated Press e uma Agência Francesa Presse já não confirmam a notícia.

Uma proposta de Orçamento foi aprovada no Senado com 173 votos a favor e 108 contra, depois de ter sido aprovada na semana passada pela Câmara dos Deputados.

Na segunda-feira, o presidente italiano, Sergio Mattarella, pediu um Renzi que se manter em funções até aprovação definitiva do orçamento.

Uma direção do Partido Democrata (PD, centro-Esquerda) de Renzi deve reunir-se esta tarde.

As próximas eleições legislativas italianas estão previstas para fevereiro de 2018, mas os partidos da oposição defendem uma antecipação das eleições um ano por considerar que o resultado do referendo é um voto de desconfiança ao governo.

Uma reforma constitucional para chumbada pelos eleitores, com 59,5% dos votos "não" e 40,05% "sim".

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Aos 80 anos, Mattarella é a chave da estabilidade política

Sofia Lorena
4 de Dezembro de 2016, 7:23


O primeiro-ministro pode demitir-se e o ainda líder da direita diz-se pronto a salvar a Itália. Caberá ao Presidente gerir a crise.

Sergio Mattarella esperava um mandato mais tranquilo. 
Esperava já não ter de lidar com Silvio Berlusconi. 
Quando aceita ser Presidente de Itália, o melhor é mesmo contar com crises e com Il Cavalieri.

Aos 80 anos, Berlusconi assume um “exercício de responsabilidade patriótico” e, como o primeiro-ministro de centro-esquerda, Matteo Renzi, diz que se demite se o “não” derrotar a reforma constitucional no referendo deste domingo, anuncia o pleno regresso à política. 
Garante que a sua saúde nunca esteve melhor e acusa Renzi de “profanar” a democracia e “pretender instaurar uma ditadura” com mudanças que fortalecem o executivo.

Tudo na mesma, por aqui. 
O homem que irrompeu na política italiana para ocupar à direita o espaço deixado vazio pela crise do início dos anos 1990, que fez implodir o sistema partidário, continua exagerado e autocentrado. 
E sim, o homem dos mil conflitos de interesses, falou num dos seus canais de televisão.

“Num momento de crise, a figura do chefe de Estado é particularmente importante, uma válvula de segurança”, dizia pela mesma altura Renzi, num programa do canal La7 dedicado ao referendo. 
“Todos os italianos podem estar tranquilos, estamos em óptimas mãos com o Presidente Mattarella.”

Então, o que se passa em Itália? 
Renzi quis mudar a lei eleitoral e a Constituição para alterar os poderes das duas câmaras do Parlamento e cortar gastos com entidades territoriais. 
Não correu bem. 
A lei eleitoral está nos tribunais e a reforma constitucional foi aprovada mas sem votos suficientes para evitar uma consulta popular – que Renzi se arrisca a perder.

Como disse e repetiu, demite-se nesse cenário. 
Será Mattarella a receber a sua demissão e a tentar perceber para onde se vai a seguir a isso. 
Quem promete uma festa nas ruas se a derrota do primeiro-ministro se concretizar é o Movimento 5 Estrelas, o partido anti-partidos de Beppe Grillo, que já controla câmaras como as de Roma e morde os calcanhares do Partido Democrático, de Renzi, nas sondagens.

A última festa a celebrar a saída de um primeiro-ministro aconteceu mais ou menos nesta altura do ano, em 2011: o homenageado era Berlusconi, substituído então pelo governo de tecnocratas liderado por Mario Monti.

Aconselha-se calma ao 5 Estrelas. 
O “não” estava muito bem encaminhado nas sondagens, mas os referendos são propensos a surpresas. 
O voto postal vindo do estrangeiro ultrapassou as expectativas e pode estragar a festa à oposição. 
Segundo o jornal La Repubblica, 40% dos quatro milhões destes eleitores. 
“Se o ‘sim’ conseguir dois terços dos italianos no estrangeiro, então é possível”, diz Renzi. Os defensores do “não” sustentam que estes votos são mais propícios a fraude e ameaçam ir para os tribunais. 
Mattarella terá muito com que se entreter, seja qual for o desfecho.