domingo, 4 de dezembro de 2016

Ganhe ou não a eleição, a extrema-direita já fez danos na democracia austríaca

MARIA JOÃO GUIMARÃES
4 de Dezembro de 2016, 6:03


"Racionalidade em vez de extremo", apela o cartaz de Van
der Bellen.  "Com Coração e alma pela Áustria", diz o do
seu rival Hofer 
Hofer pode vencer a presidência e o FPÖ vai à frente nas sondagens para as legislativas. 

O que acontecer neste país de bem-estar e sem problemas sociais relevantes, terá consequências em toda a Europa, avisa o escritor Robert Menasse.

O candidato do partido de extrema-direita, Norbert Hofer, disse que se vencesse as eleições as pessoas seriam surpreendidas com as coisas que serão possíveis na sua presidência. O comentário não passou despercebido num país em que o poder do Presidente existe no papel, mas onde todos têm abdicado de o usar.

Na Áustria, o Presidente pode demitir o Governo e dissolver o Parlamento, forçando eleições legislativas. Este será o seu mais importante poder (há outros, como poder vetar ministros ou governar por decretos de emergência num período até quatro semanas) e tem sido referido na campanha para as presidenciais, cuja segunda volta se repete este domingo.

Se Hofer for eleito, e decidir usar essas prerrogativas logo a seguir a ser eleito, a Áustria poderá não só ter um Presidente de extrema-direita, como um chefe de Governo também. O Partido da Liberdade (FPÖ) é neste momento o partido à frente nas sondagens para as legislativas que têm de ser realizadas antes do final de 2018, com mais de 30% das intenções de voto, seguido dos dois clássicos grandes partidos austríacos (os conservadores do ÖVP/Partido do Povo e os sociais-democratas do SPÖ), cada um na casa dos 20%.

O chanceler social-democrata Werner Faymann demitiu-se em Maio, na sequência da derrota do SPÖ na primeira volta das presidenciais, mas ambas as formações na grande coligação de Governo recusaram uma antecipação das eleições. Haveria razões para agora a defender.

Esta votação presidencial é o culminar de vários inéditos: na primeira volta, em Abril, os candidatos dos dois grandes partidos austríacos foram afastados, deixando em confronto na segunda volta o candidato do Partido da Liberdade (FPÖ) Norbert Hofer (45 anos), e o candidato independente apoiado pelos Verdes, Alexander Van der Bellen (72 anos); um representante de um partido que andou quase sempre abaixo dos 10% de votos, e outro que se apresenta como um partido anti-sistema (mas que já participou no Governo em 2000-2005).

Na segunda volta, em Maio, Van der Bellen venceu Hofer por uma pequena margem, mas o derrotado desafiou legalmente o resultado. Apesar das irregularidades serem pequenas e apenas nos votos por correspondência (por exemplo, o início da contagem, em alguns locais, foi antes ou depois do previsto), o Tribunal Constitucional decidiu anular os resultados e repetir as eleições. As sondagens dão agora um empate técnico entre os dois candidatos.

O escritor de esquerda Robert Menasse afirmou que o FPÖ conseguiu “destruir a democracia” com o seu desafio ao resultado, levando as autoridades, por não quererem deixar qualquer sombra de dúvida sobre o processo, a mandar repetir uma eleição por irregularidades que não tiveram relevância para o resultado. Quando muitos se questionam sobre o grau de ameaça à democracia caso o partido "anti-sistema" vença, Menasse diz que o dano já foi feito. “Na verdade, o FPÖ não suportou perder”, declarou o escritor.

No diário liberal Der Standard, o colunista Hans Raucher assegura que “se o FPÖ tomar o poder, a Áustria não será reconhecível”. O ex-Presidente da Áustria Heinz Fischer (social-democrata, a quem sucederá o vencedor), avisava em entrevista ao francês Le Monde que “a democracia não é indestrutível”. Mas Menasse acrescenta que as consequências “não se sentirão só na pequena República da Áustria, mas em toda a Europa”.

O papel dos refugiados

A subida da extrema-direita na Áustria, país de bem-estar e sem problemas sociais relevantes, tem sido ligada à crise dos refugiados. Este foi um factor, não pela sua mera existência, mas pelo modo como o Governo reagiu. O professor de política da Universidade de Princeton (EUA), Jan-Werner Müller, explica com dois exemplos. O chanceler social-democrata Werner Faymann, que chegou a ser o maior aliado da sua homóloga alemã Angela Merkel na ideia de receber refugiados, deu uma reviravolta total e acabou a fechar fronteiras. O resultado foi que perdeu popularidade e demitiu-se. Nas eleições para a câmara de Viena, o autarca, outro social-democrata, Michael Häupl, manteve a sua posição fortemente pró-refugiados e, apesar de ser já pouco popular, e de as sondagens darem a vitória à extrema-direita, venceu as eleições locais de Outubro do ano passado contra todas as expectativas.

A “crise dos refugiados” tem sido no máximo um catalisador, argumenta o especialista em extrema-direita Cas Mudde, lembrando que a subida para primeiro lugar do FPÖ nas sondagens aconteceu em 2014, “muito antes de os refugiados serem vistos como uma ‘crise’ na Europa”.

Mudde fala do “comportamento oportunista e incompetente” dos dois grandes partidos, primeiro na reviravolta do Governo na questão dos refugiados, segundo por não terem apoiado oficialmente o candidato ecologista contra Hofer. 

A extrema-direita, que começou a ganhar expressão quando liderada pelo populista e exuberante Jörg Haider (que morreu em 2008, três anos depois de ter deixado o FPÖ e fundado um novo partido), aproveitou o domínio dos dois partidos para se apresentar como uma alternativa. O facto de os conservadores e sociais-democratas praticamente terem dividido país entre os dois, dominando o Governo em grandes coligações ou usando as grandes maiorias parlamentares para aprovar leis que poderiam ir contra a Constituição, deixando grande parte da definição de políticas públicas a cargo da negociação de parceiros sociais e mantendo o Parlamento como uma câmara de confirmação de propostas legislativas e não da sua elaboração, criou espaço para que surgisse alguém a capitalizar a ideia de ser uma oposição real. Junte-se a isto os mais convenientes dos bodes expiatórios – Bruxelas, estrangeiros – para permitir sucesso.

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Mas isto não explica como podem ser aceites ideias tão próximas das que vigoraram durante o período nazi, embora o flirt com o anti-semitismo que vigorava no tempo de Haider tenha diminuído – o FPÖ aproximou-se de Israel e tornou-se sobretudo anti-sistema e anti-islão.

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