sábado, 7 de julho de 2018

“Não consegui proteger a minha filha. Agora não há nada”. Os sobreviventes de Pedrógão um ano depois /premium

PEDRÓGÃO UM ANO DEPOIS
Miguel Santos Carrapatoso  e João Porfírio
14 Junho 2018















Gina Antunes perdeu a filha e a mãe no fogo: "Aquela imagem está sempre na minha cabeça. Para mim, todos os dias são 17 de junho, aquele malvado dia que nunca devia ter acontecido".

Gina, Manuel, Cacilda, Maria e Alzira. 
Cinco sobreviventes de Pedrógão Grande, um ano depois da tragédia. 
Cinco formas de lidar com o luto. 
Negação. 
Raiva. 
Medo. 
Depressão. 
Aceitação?

1 - A negação. “Hoje, vou aos cemitérios e penso que elas não estão lá”

A porta abre-se e revela o amplo e fresco salão que serve de piso inferior à moradia de dois andares. O impacto é imediato. É impossível não reparar naqueles olhos azuis-claros que espreitam em cada retrato. Lá ao fundo, junto à parede, as luzes brancas do altar improvisado compõem o resto do cenário. 

Está decorado com peluches, bonecas e um carrinho de bebé em tons de rosa. Eram os brinquedos de Bianca, a criança de quatro anos que morreu quando o carro em que seguia com a avó, a mãe e o irmão foi engolido pelas chamas. Passou um ano desde os incêndios de Pedrógão Grande.

Gina Antunes, mãe de Bianca, não controla as lágrimas. Era ela quem estava a conduzir naquele dia. Numa questão de segundos, foram surpreendidos pelas chamas. O filho mais velho, de 20 anos, saiu do carro ainda em andamento. Gina só parou quando deixou de ver um único centímetro de estrada. O fumo, o calor e o fogo eram insuportáveis. Abriu a porta, saiu do carro, caiu uma e outra vez, até que se convenceu de que estava condenada. Escondeu-se debaixo do carro e decidiu esperar a morte de olhos fechados. Aceitou o seu final, mas não conseguia assistir ao resto. Até que sentiu alguém a puxar-lhe pelo braço, uma figura masculina vinda sabe-se lá de onde. Ainda resistiu, gritou até perder a voz e as forças. Não podia simplesmente fugir, não sem antes tentar uma e outra vez. Acabaria por ser levada à força, sem poder fazer mais. As portas não se abriram. Perdeu a mãe e a filha, deixadas, impotentes, no banco de trás enquanto tudo ardia. Maria Odete Rodrigues, de 62 anos, e Bianca, com apenas 4, morreram carbonizadas no interior do carro.
























“Eu sei que elas estavam vivas dentro do carro… A forma como foi… Os meus braços ardiam com o calor… Não suportava… Imagino o que elas sofreram, o corpo a arder com as chamas dentro do carro…. Não encontro respostas para isto.” Gina continua: “Aquele momento está sempre no meu pensamento. Onde quer que eu esteja, onde quer que eu vá, aquela imagem está sempre na minha cabeça. Para mim, todos os dias são 17 de junho. Aquele malvado dia que nunca deveria ter acontecido”.

Há um ano, em Portugal, morreram 66 pessoas e mais de 250 ficaram feridas num incêndio que, em poucas horas, atingiu dimensões catastróficas. A maioria das vítimas morreu enquanto fugia das chamas, algumas encurraladas nos próprios carros. Faltou tudo: assistência, socorro e organização. Tudo o que podia falhar, falhou. Perderam-se, além de vidas humanas, casas e meios de subsistência primários. Num meio maioritariamente rural, como o de Pedrógão Grande, animais e culturas agrícolas ficaram reduzidos a cinzas. Hoje, um ano depois, há quem comece finalmente a regressar a casa. Mas há quem tenha perdido tudo e pouco ou nada tenha recuperado. Em alguns casos, há quem tenha perdido algo ou alguém que nunca mais vai recuperar. Voltar a Pedrógão Grande é regressar, por isso, a uma região onde o medo convive com todas as fases do luto: a negação, a raiva, a depressão e, por fim, a aceitação.  Gina Antunes ainda não aceita o que aconteceu.
























“Dizia-lhe muita vezes: ‘Bianca, come para seres grande como a mamã’. E ela respondia: ‘Não, porque eu vou ficar pequenina para sempre’. Também estava sempre a dizer: ‘Mãe, tu proteges-me?’. Mas eu não a consegui proteger. Agora, não há nada. Por isso é que muitas vezes me pergunto: ‘Será que elas foram fazer uma viagem e voltam?’ É quando vem a revolta e penso que é tudo mentira”.

Gina tem olheiras profundas. Os olhos estão inchados e vermelhos. As fotografias em redor provam que perdeu muito peso. Esteve quase um mês internada no hospital por causa das queimaduras graves com que ficou por ter tentado, a todo o custo, salvar a mãe e a filha. Não consegue elevar o braço esquerdo mais do que 45 graus.

O internamento fez com que não pudesse assistir aos funerais da mãe e da filha. “Não sei se conseguiria ter ido”, assume. “Hoje, vou aos cemitérios e penso que elas não estão lá.” A morte das duas tornou-se um fardo demasiado pesado para a família. O marido de Gina não aceitou ajuda psicológica e refugia-se no silêncio. Continua a beijar o retrato da filha todos os dias, de manhã, quando acorda, e à noite, antes de se deitar. O filho mais velho, que tinha na avó uma das maiores confidentes, ainda hoje se fecha no quarto que pertencera a Maria Odete para chorar. Não aguenta mais viver nesta casa. Gina, para já, apenas sobrevive. O silêncio transformou-se em sinónimo de ausência e só os seus próprios gritos, que liberta quando estende a roupa ou quando percorre a estrada que antes fazia com a filha, a ajudam a enfrentar o vazio.
























“Tenho tido momentos fracos e já pensei em muita coisa…. Houve uma noite em que estava para tomar os meus medicamentos, ali na cozinha, e pensei tomar todos os que estavam na gaveta. Assim, a dor ia acabar. Mas ao mesmo tempo pensei: ‘Não, não podes tomar tudo. Então e depois, vai haver outro funeral? O teu filho vai ficar sem mãe? O marido vai ficar sem mulher? Como é que vai ser? Tomas os medicamentos que tens a tomar e vais para cama. Ponto'”. Encontrou alguma força para continuar. Talvez sejam as flores. “Refugio-me nas flores. Já pus mais flores desde que regressei a casa do que em toda a minha vida. A minha mãe adorava flores.”

[“‘Mãe, tu proteges-me?’. Mas eu não a consegui proteger.” O depoimento de Gina Antunes, um ano depois de ter perdido a mãe e a filha]

2 - A raiva. “Quem fez isto devia pagar. Era fazer-lhes o mesmo”

Um ano depois dos incêndios, Pedrógão Grande vive ainda entre a dor, a raiva, o medo e o desespero. Mas começa também a haver esperança. A pouco e pouco, o negro vai dando lugar ao verde: as flores silvestres nascem por todo o lado. Já não se veem carros calcinados, não há troncos caídos, nem cabos elétricos desfeitos. Já não se ouve o crepitar das chamas, só os pássaros e os insetos que regressaram. O ar é fresco, apesar do calor, e o cheiro a queimado sumiu-se. Não fossem alguns sinais da calamidade que aqui se viveu e seria difícil imaginar a violência do desastre que se abateu sobre Pedrógão Grande. Sinais como uma fita amarela da polícia esquecida em torno de um tronco e que antes servira para demarcar a zona onde estava um cadáver.

[Deslize o cursor entre as duas imagens para ver a foto do mesmo local há um ano e agora]

















































Descendo a ladeira chega-se ao centro de Nodeirinho. Foi aqui, nesta aldeia com pouco mais de 30 habitantes, que morreram 11 pessoas. E é aqui que vive Manuel da Costa, de 61 anos. Um dia depois do grande incêndio ainda procurava o filho, que fugira de carro quando o fogo já rodeava a aldeia. Manuel saberia, pouco depois, que o filho de 21 anos tinha morrido. Foi preciso identificar o corpo.


Passou um ano e Manuel tem o mesmo bigode branco, manchado de amarelo pelos cigarros que fuma compulsivamente, e a mesma pele grossa e torrada, de quem trabalha de sol a sol. As mãos vão mexendo na rebarbadora que tem diante de si. Quando não estão a arranjar o aparelho, as mãos fogem-lhe para o bolso do polo, de onde saca um e outro cigarro marca Winston. “Nunca mais na vida isto se esquece. Não é fácil…”.























Só repete uma ideia até à exaustão: tudo isto poderia ter sido evitado e os responsáveis ainda andam à solta. “‘Tá tudo quieto, ninguém faz nada! A maioria foi a tribunal e ficou com pulseira eletrónica. Mas o que é isto!?”. É a única vez em que a voz se faz ouvir para lá do murmúrio. “Quem fez isto devia pagar. Era fazer-lhes o mesmo. Amarrá-los a uma árvore e fazer-lhes o mesmo”, explode. A incompreensão e a ira estão lá: “Quando um gajo anda distraído, anda bem…”

3 - O medo. “Se eu não saí daqui com o fogo de volta de mim, agora vou para onde? É para um lar?”


Além da dor e da revolta, o dia-a-dia de Pedrógão Grande também se faz de medo. Mesmo um ano depois dos incêndios que destruíram tudo ou quase tudo, há quem ainda sinta medo. Medo que o fogo regresse, claro, mas sobretudo medo dos perigos do isolamento. A GNR deu ordens expressas para que as pessoas, sobretudo as mais velhas (e são quase todas mais velhas), não abram a porta a estranhos. Há vários testemunhos de burlas por toda a região, relatos de pequenas poupanças de uma vida, as que restaram quando já não há animais para tratar ou legumes e fruta para plantar, saqueadas em minutos.
























“Estou sempre com muito medo”, desabafa Cacilda Nunes. Tem 76 anos e quando falou com o Observador há um ano passara aquela noite a combater o incêndio, sozinha e rodeada pelas chamas. Estava exausta, mas sobreviveu sem qualquer ferimento. Demorou a abrir a porta. Perguntou uma e outra vez quem era e o que pretendia, até abrir finalmente a porta. Por entre desculpas, caminhou hesitante até ao tanque de lavar roupa e atirou-se para o banco de madeira improvisado. “Estava ali a pôr um bocadinho de água morna, com sal e vinagre, em cima do joelho. Dizem que faz bem, mas eu não sei o que isto é…”, queixa-se.

Depois do incêndio, perdeu quase tudo: parte da casa, os animais e as plantações. Hoje, já tem o telhado reparado, recuperou três galinhas, “graças a Deus”, e já tem feijões, tomates, pimentos e um bocadinho de alface. A ajuda chegou, apesar da burocracia: foi ela própria, desabafa, que teve de construir a pequena parede do galinheiro para acomodar as galinhas. “A parede ficou torta, feita às três pancadas, mas ficou”, conta, com um certo orgulho. Um orgulho que desaparece quando explica como têm sido estes dias depois da catástrofe.


“Os meus dias? São tristes e a chorar. Nunca se esquece, mas o que é que nos adianta estarmos sempre a falar no mesmo?”. Cacilda encolhe os ombros, enquanto vai ajeitado o lenço negro que lhe tapa a cabeça. “Sempre vou tratando da minha vida, sozinhita. Agora é que não estou capaz de fazer nada. E tanto que tenho de fazer. E tanto que tenho de fazer…”.























Passa os dias quase sempre sozinha, animados, aqui e ali, pela visita de uma ou de outra vizinha. A família mais próxima está muito distante e vai aparecendo de vez em quando. Daí o medo. “De vez em quando, vem aqui a guarda. Está sempre a avisar para não se abrir o portão. A gente não sabe quem é que aqui vem, se é por bem, se é por mal”, diz, antes de mostrar o pequeno aparelho verde com dois botões que carrega no bolso do avental: tem ligação direta à GNR e, assim que pressionado e no caso de o portador não atender a chamada telefónica, todos os meios são acionados. Há vários como este espalhados por toda a região.

Cacilda não demora a recordar o que aconteceu à vizinha. Certo dia, abriu a porta a dois homens que propunham trocar todo o dinheiro que tivesse em casa por uma nova moeda — o euro tinha acabado, juraram. Crente, a vizinha entregou milhares de euros sem qualquer resistência. Nunca mais os viu e a polícia continua à procura dos suspeitos. “Às vezes sinto barulhos durante a noite… Tenho medo”, assume Cacilda, enquanto esfrega o joelho direito, o tal que a atormenta.

Cacilda queixa-se de como lhe prometeram 13 mil euros e deram apenas 2 mil. “Prometeram uma coisa e deram outra. A quem se queimou a casa, ficaram ali com uns palacetes que sei lá”, desabafa, antes de pedir licença para atender o telefone. Ausenta-se por alguns minutos. “Era a minha vizinha”, diz. “Não gostou nada que tivesse aberto o portão, mas eu disse que não me iam fazer mal…”, garante. Mas se há medo, porquê ficar aqui, sozinha? “Se eu não saí daqui com o fogo de volta de mim, agora vou para onde? Para onde é que eu hei-de ir? É para um lar? Agora os novos não querem aturar velhos. Os novos não aturam velhos.”


Cacilda, filha de pedreiro, faz questão de ir mostrar o muro que construiu com as próprias mãos, aos 76 anos. Lá ao longe, na estrada, um carro da GNR aproxima-se e pára mesmo à porta de casa. Dois guardas aproximam-se e começam a fazer perguntas. Mesmo depois de tudo esclarecido, não deixam de a censurar. “O que é que já lhe dissemos, Dona Cacilda? Não pode abrir a porta a estranhos.” Cacilda desculpa-se como pode. Desta vez, a ajuda não era precisa, mas chegou. Há quem se queixe de ter sido esquecido.

4 - A depressão. “Quando me deito está tudo a passar pela minha cabeça. O fogo veio de além”


Assim que se entra na casa, um cheiro nauseabundo parece entranhar-se. É difícil identificar de onde vem e o que é, mas é demasiado forte para ignorar. As moscas passeiam furiosamente. Maria da Assunção, de 74 anos, veste de negro da cabeça aos pés. Tem uma luva preta na mão direita, que mal mexe. “A mão adormeceu e o sangue já não circula. Está sempre gelada”, explica. Há uns anos, um acidente grave quase lhe partiu a coluna. Agora, o peso da idade e a mão inutilizada tiraram-lhe praticamente toda a mobilidade. Tudo o que faz é em esforço e com dores.
















































A última vez que falou com o Observador, há um ano, em Carvalheira Grande, na freguesia da Graça, só pedia para não ser esquecida. Se não foi, parece ter sido. A casa continua igual ao que era antes e depois do incêndio: miserável. As telhas que arderam foram reparadas, mas ainda chove lá dentro. “Continua a chover cá como chove na rua”, queixa-se, apontando para o cimo das escadas que unem os dois pisos. Lá está o balde de plástico que recebe a água que cai do tecto. Tudo é um amontoado de coisas e objetos indistinguíveis, que só parecem acentuar a humidade que mora nas paredes sujas. No exterior, os cobertos que antes guardavam animais, alimentos, roupas e máquinas são entulho. O mesmo entulho em que se transformaram na noite de 17 de junho de 2017. Um ano depois, tudo ou quase tudo continua igual. Um ano depois, Maria da Assunção tem pouco ou quase nada.

“Isto foi uma desgraça o que me aconteceu. Todos os dias me levanto e tenho isto tudo queimado, com tudo numa miséria. E agora, coitada de mim. Uma reformazita que me dão, que não chega para pagar água, luz, gás e a comida. Não chega para nada e não me arranjaram as minhas coisinhas?”


Maria da Assunção não consegue parar de chorar. Ao fundo, enterrados em duas cadeiras brancas de plástico, Jorge Cláudio, de 53 anos, e Joaquim, de 33, assistem ao desespero da mãe. Jorge, com o boné a tapar-lhe o rosto. Joaquim, de olhar vazio e t-shirt esfarrapada e suja. Têm ambos atrasos cognitivos, conta. Nenhum dos dois reage ou intervém. Maria da Assunção, viúva há dois anos, é uma mulher em depressão.
























“Quando me deito está tudo a passar pela minha cabeça. Não é a sonhar, é mesmo comigo acordada. O fogo veio de além. As folhas dos eucaliptos a estalarem, o fumo era tanto que já nem via nada. E eu com a mangueira por mim abaixo, senão morria ali queimada”. As memórias são ainda muito vivas, quase como se se sentisse tão abandonada como naquele dia. “Os bombeiros passaram e eu disse-lhes: ‘Por favor acudam-me, que eu morro aqui queimada. E eles disseram-me assim: ‘A gente já vem. A gente já vem’. Até hoje, nunca mais vieram. Até hoje, nunca mais vieram…”, repete.


Queixa-se das seguradoras que não apareceram e da ajuda que nunca chegou. Confunde-se quando tenta explicar que um dos cobertos não tinha seguro, mas os outros sim. Ou então faltava a escritura, mas já está a chegar. Detalhes que não estão ao seu alcance. Não compreende como é que uns tiveram direito a “tudo” e ela não teve direito a nada. “Veio tanto dinheiro para Pedrógão e não souberam gerir? A uns tudo e a outros nada? A mim ninguém me deu nadinha. Ao menos que me arranjassem as coisas, já era bom.”         























Um ano depois, a ajuda não veio e dificilmente virá. Na zona cinzenta que envolve seguros, autarquia, junta de freguesia e Santa Casa da Misericórdia, ninguém parece querer assumir responsabilidades. E ninguém parece perceber o óbvio: que aquela família de três, dependente das pensões de Maria da Assunção e dos biscates que o filho mais velho vai fazendo, sem terreno para cultivar e sem espaço para guardar e cuidar dos animais que possam vir a existir, está condenada e abandonada. Pelo menos, é assim que se sente Maria da Assunção. “Está tudo ardido. Ardeu tudo. Só tive desgraças na minha vida e agora estou na miséria. As arrelias têm-me matado.” Aqui, nesta casa, não nascem flores.


[“Os bombeiros disseram assim: ‘A gente já vem’. Até hoje, nunca mais vieram.” Veja no vídeo o depoimento de Maria Assunção]

5 - Aceitação? “Eu perdi o gosto de tudo. Não tenho ilusões para nadinha, nadinha. Só para viver um dia de cada vez”

A menos de cinco quilómetros de Carvalheira Grande, a sul, fica Vila Facaia, uma das zonas mais afetadas pelo fogo. Alzira Quevedo, 76 anos, perdeu tudo naquela noite: a casa, os animais, a roupa e as recordações. E ia perdendo o marido. Joaquim Quevedo, 81 anos, decidiu voltar para trás enquanto tudo ardia, largando a mulher e o sobrinho, para tentar salvar a casa. Rodeado de fumo, caiu inanimado. Foi resgatado por um vizinho, que o encontrou no chão. Tinha já as pernas e os braços queimados. Até a carteira que trazia no bolso da camisa ardia. Era uma questão de segundos até perder a vida.


“Se me arrependo de ter voltado para trás? Arrepender-me para quê? O que tem de ser tem de ser. Se morresse, era o mesmo, pronto. Um carro voltou, deu comigo no chão e foi o que me safou. Já não havia nada a fazer”, resume Joaquim, recostado no sofá castanho colado à parede onde está um quadro da Última Ceia. O aparente desprendimento com que fala não esconde as marcas com que ficou: esteve internado várias semanas no hospital, perdeu a força no braço direito e ficou praticamente cego de um olho.


Alzira reprova-o à distância.  Veste um avental azul escuro e uma camisa com flores brancas bordadas num fundo azul-clarinho. Está sentada à mesa e é ela quem conduz a conversa. “Só pensávamos em defender a gente. E o meu marido nem se defendeu, porque foi teimoso. Se ele vai com a gente, talvez se safasse. Foi teimoso, voltou para trás. A minha aflição quando o vi a voltar para trás, rodeado de lume e de fumo. As chamas pareciam ondas do mar. Quando vi aquilo, fiquei perdida. Pensei: ‘Vamos morrer todos’.”
















Não morreram. Mas, tal como todos os que ficaram, uma parte de si perdeu-se a 17 de junho de 2017. “As pessoas já não são o que eram”, conta. “Não sei explicar. Parece que a gente perdeu o gosto. Eu perdi o gosto de tudo. Não tenho ilusões para nadinha, nadinha. Só para viver um dia de cada vez. Uma vida inteira a trabalhar e de um momento para o outro ficamos sem nada.”

Os primeiros meses foram suportáveis graças ao apoio que recebeu. “Se não fossem as pessoas boas, como é que a gente recuperava? Como é que a gente vivia? Tenho tido muita gente amiga, muito apoio”, garante. Vive na casa de um primo, com o marido e com o sobrinho criado como um filho desde que os pais morreram. É ele quem chega, sem avisar. Tinha estado a jogar dominó, ali perto. Fica a observar a cena à distância. Traz um casaco verde, um chapéu azul e umas calças de ganga impecavelmente lavadas. Sofre de Trissomia 21. É também por ele que Alzira quer mudar-se o quanto antes. O sobrinho não se está a adaptar bem à mudança. Mas já não faltará muito.


[“Se não fossem as pessoas boas, como é que a gente recuperava?” Veja no vídeo a história de Alzira Quevedo] 

A casa nova, construída sobre as ruínas da anterior, está praticamente pronta. “Agora, se Deus quiser, vem uma coisa atrás da outra. Os pedreiros nunca largaram aquilo, nem a chover”, conta, antes de aceitar, sem hesitar, fazer uma visita guiada até ao futuro lar.
























O percurso não demora mais do que três minutos de carro. Chegados lá, as paredes ainda cheiram a tinta. Há pó de obras por todo o lado, mas circula ar fresco no interior da casa, pintada em tons de branco e cinza claro. O negro já não existe ali mais. Alzira vai elogiando as obras e explicando todas as divisões. Só a escadaria íngreme e sem corrimão parece ser incompreensível. Mas Alzira não se deixa ir abaixo. “Não me posso queixar.” A casa estará pronta em breve, talvez ainda antes de setembro. “Quero vir para aqui”, segreda-nos o sobrinho. Ele, como todos os outros, anseia pela normalidade depois da catástrofe. Que depois de aceitarem o que perderam, chegue, por fim, a esperança de dias melhores.


Vídeos: 
Edição de André Dinis Carrilho, Fábio Vilares e Raquel Sá Martins. 
Realização de André Dinis Carrilho

sexta-feira, 6 de julho de 2018

“Passou por aqui uma guerra. ” Como se cuida de uma comunidade em risco de colapso psicológico

REPORTAGEM
Liliana Valente
17 de Junho de 2018,    8:10
























A saúde mental das pessoas afectadas pelos incêndios de há um ano foi tema de discussão ao longo de meses. Os cuidados foram ou não suficientes? E o que foi feito? No último ano, o PÚBLICO foi falando com utentes e com as psiquiatras que coordenam as equipas que fizeram mais de cinco mil consultas. Este é o retrato de uma comunidade em sofrimento prolongado a tentar erguer-se do luto e do trauma.

“Não lhe chamem estrada da morte.” 
Era Setembro, as festas de Verão tinham sido todas suspensas naqueles três concelhos, mas houve uma que, pela tenacidade das gentes da Moita, Castanheira de Pêra, e pela devoção à Nossa Senhora do Bom Sucesso, se manteve. 
Era gente triste a dançar com lágrimas, ali mesmo à beira da N236-1, que ficou com um rótulo que ninguém quer ouvir. 
“Ainda ontem passaram aqui uns turistas a perguntar pela estrada para verem onde morreram pessoas. 
Não têm vergonha”, ouve-se da conversa entre duas amigas no beiral da igreja onde dizem que se salvou uma família, no trágico dia 17 de Junho de 2017.

A conversa constante em torno da estrada e de todos os outros locais onde a tragédia aconteceu é uma faca de dois gumes. 
Na visão dos psiquiatras que têm acompanhado o evoluir da situação mental dos utentes naqueles concelhos, o facto de as vítimas falarem, contarem o que se passou ajuda-as a conviver com o sentimento de dor, a fazer a “catarse”. 
Contudo, ouvirem falar de constantes responsabilidades que caem em saco roto e dos rótulos postos a locais onde vivem todos os dias acentua a dor e provoca o reavivar de memórias, que têm de estar guardadas “num sótão”, na parte de trás do cérebro, um lugar onde, quem sofre, só lá vai para as arrumar, nunca apagar.

Não havia experiência em Portugal de como tratar a nível psicológico e psiquiátrico uma vasta comunidade fustigada por uma catástrofe como os incêndios do ano passado. 
Entre-os-Rios tinha sido um trabalho duro (a queda da ponte, em 2001, causou 59 mortos); Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos elevaram os problemas e riscos para a saúde mental a uma escala nunca vista e que permanecerá por muito tempo. Os especialistas socorreram-se de experiências noutros países, aplicaram muita da literatura que estudaram e admitem falhas, que constituem o pilar das recomendações que servirão de guia para melhorar trabalhos semelhantes no futuro.

“Um destes dias oferecemos um galo a um paciente. 
Todos os dias acordava com o galo que morreu nos incêndios”, conta a psiquiatra Ana Araújo, coordenadora da equipa de saúde mental dos três concelhos afectados em Junho. A alteração da rotina matinal descoordenou as horas de sono daquele doente e o sono é elemento fundamental para a recuperação em saúde mental. 
Havia quem não dormisse. 
“Iam para a cama, reviviam momentos com as chamas, havia pessoas que nos descreviam que ouviam os estalidos das chamas, que sentiam o calor. 
Se a pessoa não dorme bem, tem de ser ajudada a dormir. 
O sono reparador é fundamental para que tudo o resto seja recuperado”, explica Célia Franco, uma das médicas psiquiatras coordenadora de equipas nos concelhos atingidos pelos incêndios de 15 de Outubro.
Num rastreio às populações afectadas pelos incêndios, mais de um terço dos inquiridos (750 no total) evidenciava “sintomas de luto complicado”
A intervenção no dia-a-dia da comunidade, com pequenos gestos como a recuperação de animais ou consultas ao domicílio, fazem parte do trabalho que já estava no terreno pelas equipas de Saúde Mental Comunitária, uma experiência dos hospitais universitários de Coimbra em Leiria Norte (nos três concelhos afectados em Junho) e no Pinhal Interior Norte (que abarca os concelhos de Oliveira do Hospital, Tábua e Arganil). 
O conhecimento prévio do terreno facilitou a intervenção neste último ano. 
Estas equipas seguem o conhecido “modelo de Avilés”, que herdou o nome da localidade das Astúrias onde está sedeado o hospital que criou este tipo de intervenção, baseada no tratamento de doentes a partir da sua vida em comunidade.

Há anos no terreno, estas equipas tinham uma lista das pessoas que acompanhavam com vários problemas, mas os incêndios trouxeram-lhes centenas de outras pessoas, com dificuldades diferentes, sem doença mental anterior associada. 
Gente com dificuldade em lidar com a dor, o sofrimento, em fazer o luto. 
No total, foram realizadas cinco mil consultas entre psicologia e psiquiatria, um trabalho considerado “suficiente” por dois inquéritos realizados pela comissão de acompanhamento da população afectada pelos incêndios, presidida por António Leuschner. 
“Há quem diga que há aspectos que têm sido abordados de forma superficial, não há nada de mais falso. 
Vamos dimensionar as coisas. 
As pessoas têm de ser respeitadas no seu espaço. 
Há pessoas que precisam de ajuda profissional, mas não podem ser obrigadas a tê-la. 
O processo de luto é muito individual. 
A natureza individual do luto tem de ser enfatizada”, defendeu.

De acordo com o relatório desta comissão, mais de um terço dos inquiridos (750 no total) evidenciava “sintomas de luto complicado”. 
Para a Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG), houve desde sempre uma confusão entre o “luto” e “trauma”, que fez com que esta associação apresentasse várias queixas ao modo como estava a ser prestado apoio psicológico e psiquiátrico na zona. 
“Se o luto começa ao fim de meses, o trauma é no próprio dia. 
Se não se trabalha o trauma rapidamente, ele pode ficar crónico e cada vez é pior. 
No luto tem de se dar tempo”, diz Nádia Piazza, a presidente da AVIPG, associação que teve a ajuda de outros profissionais em saúde mental ao longo dos meses que discordam da abordagem que foi feita pelas entidades do Serviço Nacional de Saúde. 
“Nós não somos especialistas em nada: somos vítimas. 
O que sentimos – e hoje comprova-se – é que nós somos uma comunidade de desastre, com vários níveis de trauma. 
Não era uma depressão, era um trauma. 
Foi preciso que as entidades o percebessem e foi a muito custo. 
Passou por cá uma guerra que durou uma semana”, descreve.
Este discurso prolongado de quem tem a culpa não ajuda as pessoas. É importante que se apurem responsabilidades, mas que não se fale nisso todos os dias
António Leuschner
A abordagem das equipas de saúde mental foi diferente.
Depois do rastreio inicial, que contou com a ajuda dos psicólogos dos Fuzileiros, e que permitiu cruzar listas de pessoas em risco, da ida porta a porta, começando por quem perdeu familiares, foi sendo feita uma intervenção de psicólogos e psiquiatras (se fosse necessário), conforme os níveis de prioridade.
“Em termos da comunidade, tentámos de algum modo intervir no sentido de criar mecanismos e actividades com as pessoas que pudessem ajudar a perceber a tragédia, e [ver] como se podia melhorar e evoluir nas situações de desgosto.
Criar expectativas positivas, alternativas, esperança [, como o retomar da rotina com o galo]”, diz Ana Araújo.
“Agora temos de lhe dar um contexto de normalidade nesta dimensão: não queremos ‘psiquiatrizar’ a sociedade”, acrescenta.

O que era melhor para uns não era válido para todos, uma vez que este é um processo muito individual: houve quem estivesse em luto profundo por ter perdido familiares e amigos, quem ficasse em stress pós-traumático por ter vivido os acontecimentos, quem já tivesse doenças mentais associadas, entre outros casos. 
Por isso, foi decidido pelas entidades do SNS que, depois da abordagem inicial, seria reforçado o trabalho que já era feito pelas equipas de Coimbra. 
E estas intensificaram a sua presença nos centros de saúde, alargaram as horas de “porta aberta”, em que qualquer pessoa podia pedir para ir a uma consulta, e aumentaram as visitas domiciliárias. 
Tudo com um reforço destas equipas multidisciplinares, mas que em número deixou a desejar. 
Foram sempre grupos pequenos com um ou dois psiquiatras, e um ou dois psicólogos, enfermeiros de saúde mental e assistentes sociais. 
No entanto, se o apoio psicossocial de emergência qualquer um destes técnicos pode fazer, o acompanhamento no tempo é um trabalho que implica um profissional de referência. 
Um exemplo: a enfermeira de saúde mental de Oliveira do Hospital é técnica de referência de duas centenas de doentes, quando o máximo é de oito a dez.

A resposta inicial conta

A recuperação em saúde mental tem particularidades que só o tempo foi revelando, ainda mais no caso das pessoas que sofreram com os incêndios, cada qual com uma resposta inicial diferente. 
“Aquilo que temos percebido é que as pessoas que participaram, que foram pró-activas, acabaram por lidar melhor com a situação do que os que foram mais passivos, que ficaram com mais dificuldade em processar o sofrimento”, conta a médica psiquiatra Célia Franco, coordenadora da equipa do Pinhal Interior Norte. 
A reacção inicial de ajudar o outro, de tentar recompor a vida foi a “cura” para muitas pessoas, mas escondeu o sofrimento de outras, que só mais tarde se manifestou. 
Se houve quem aceitasse logo “que estava em sofrimento”, outros só mais tarde, depois de meses a ocuparem-se com outras actividades, “acabaram por reconhecer que precisavam de ajuda”. 
E para isso ajudou, acredita Ana Araújo, a presença constante dos psicólogos e psiquiatras naqueles concelhos: “Estar aqui diminui o estigma de vir ao centro de saúde procurar ajuda em termos psicológicos e emocionais.”
José Carlos Santos: “Na televisão só passava fogos. Consigo passar ao lado sem me preocupar com isso. Agora reviver… tenho de ir falando. Mas esquecer não esqueço. Vou ficar com as marcas."

A braços com o sofrimento e com o trauma causado pelos fogos, muitas destas pessoas enfrentaram esse outro problema, o estigma. 
Se esta é ainda uma realidade em geral, quando se trata de zonas menos povoadas, esta marca é agravada. 
“Passou um ano e houve quem não tivesse recorrido à ajuda de psicólogos e psiquiatras. Aqui, é um pouco como ser louco ou ter problemas mentais. 
Acho que por isso uma grande parte ainda não fez o luto, dedicaram-se à terra [como escape]”, diz João Carvalho Viola. 
“As pessoas deviam pôr isso de parte e falar com um psicólogo ou psiquiatra. 
E, se for necessário, tomar medicação também”, diz o pintor e jardineiro da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, que recorre às consultas no centro de saúde da vila.

Mas nem todas as pessoas tomaram a iniciativa de procurar ajuda. 
“O que sentimos é que éramos nós que tínhamos de nos dirigir às entidades, passado o momento do porta a porta, de perguntar se as pessoas precisavam de apoio”, diz Nádia Piazza, que ficou preocupada com “quem precisava verdadeiramente de apoio, aquelas pessoas que estão de tal ordem fechadas em si a viver a sua dor que não procuram ajuda, elas rechaçam ajuda”. 
Depois da primeira reunião geral da associação, conta que se apercebeu que havia quem precisava de apoio e não o estava a ter. 
“Havia pessoas que iam às nossas reuniões de óculos de sol, não abriam a boca. 
Na segunda reunião tinham um colapso emocional. 
Cada vez que fazíamos uma reunião era como se fosse uma terapia de alcoólicos anónimos, alguém contava a sua história.”

Estes casos mais complicados de seguir pelos profissionais de saúde são também aqueles que mais os preocupam. 
No início, foi importante a facilitação das emoções, para que essa “expressão do sofrimento a posteriori não se transforme em doença”. 
Quem o conseguiu fazer está, nas palavras de Célia Franco, a “fazer a sua catarse”. 
“O que me preocupa são os que estão a um canto calados e que não falam com ninguém. A esses é que temos de estar atentos”, diz.
Se o luto começa ao fim de meses, o trauma é no próprio dia. Se não se trabalha o trauma rapidamente, ele pode ficar crónico e cada vez é pior. No luto tem de se dar tempo
Nádia Piazza
Para encontrar melhor estes casos escondidos nos vales e montes, esta médica contou com um parceiro inusitado: o carteiro da vila de Oliveira de Hospital, que nas suas voltas do correio e na troca de palavras à ombreira das portas ia percebendo como estavam aqueles que moram nos recantos mais isolados. 
Ao ritmo da distribuição das cartas pelas aldeias e pequenos aglomerados, ia avisando ou, em linguagem médica, ia “sinalizando” às técnicas de saúde mental do centro de saúde os casos de risco que encontrava.

Essa cumplicidade na comunidade foi um pilar importante para chegar a quem sofria em silêncio. 
“Uma comunidade que perde muitas pessoas é uma comunidade que está toda em sofrimento e é preciso uma grande interajuda. 
Há comunidades que são muito resilientes, apesar de tudo, e são capazes de se superar nesta amargura toda que se construiu”, acredita Ana Araújo. 
Nesse sentimento de comunidade foi muito importante toda a informação dos vizinhos e amigos. 
Ainda hoje, estas médicas pedem atenção aos “sinais de alarme”.

Sinais que podem manifestar-se agora. 
A passagem do ano da tragédia pode pôr a nu mais algumas situações preocupantes e por isso estas profissionais pedem que as comunidades estejam atentas a alterações profundas de comportamentos. 
João Viola é um dos elementos que ajudam nesse processo de identificação de sinais de alarme em conhecidos e é, ele próprio, um “pró-activo”.

Durante meses ocupou-se a ajudar os vizinhos, tentando afastar o trauma dando cor à aldeia de Nodeirinho, que saiu de Junho pintada a negro. 
Diz que não quis baixar os pincéis, mas durante algum tempo a vontade de pintar sucumbia ao desalento de não ver os vizinhos e amigos, de não ouvir pássaros e de não ver o verde das árvores a não ser no jardim da vila de Pedrógão de que é o obreiro. 
“Ficámos todos afectados psicologicamente. 
Uns disfarçam, outros tentam calcar essas imagens e enganar-se a si próprios. 
Nós [ele e a mulher, Dina Duarte] andámos até Setembro numa correria. 
Chegou Setembro e fui-me abaixo e comecei a ressentir-me de tudo.”























Pintar funcionou como uma terapia para João Viola

Depois da tal “correria”, houve dificuldades acrescidas em lidar com o regresso à normalidade. 
“Nestas situações há uma primeira fase de reacção aguda em que todos nós somos activados, para nos defendermos destas situações. 
Daí que as pessoas tenham a tendência de ir apagar os fogos, serem pró-activas [a ajudar os outros]”, conta Célia Franco. 
Mas depois, foi tudo mais difícil, “sobretudo porque as pessoas queriam criar rotinas e não conseguiam”, acrescenta Ana Araújo.

Esta situação é mais grave nos adultos. 
As crianças passam melhor por estes traumas. 
No início foi feita uma avaliação nas escolas pelos psicólogos e professores, que tinham indicações para sinalizar uma criança, se houvesse sinais de alarme. 
“As crianças, regra geral, têm uma capacidade de resposta a situações de stress muito boa, assim os adultos com quem vivem reajam bem. 
Respostas eventualmente menos adequadas são um sintoma da situação familiar em que as crianças vivem”, explica a psiquiatra Célia Franco.

Isso mesmo defende o pedopsiquiatra José Garrido, que numa conferência em Coimbra, em Novembro do ano passado, explicou que “a melhor maneira de ajudar a criança é ajudar o adulto que está com ela”.


Há algumas crianças que estão actualmente a ser acompanhadas por psicólogos, porque viveram situações-limite naqueles dias, ou porque sofrem com a perda de familiares. Contudo, os mais pequenos são mais resilientes a catástrofes. 
“A maior parte das crianças recupera bem das catástrofes, desde que tenha apoio de adultos. 
O que é preciso é que os adultos expliquem à criança o que está a acontecer. 
Ainda não vi nenhuma criança em que o incêndio tenha sido a causa do trauma. 
Foi sempre outra coisa paralela”, defendeu o mesmo especialista durante um encontro para debater a saúde mental das vítimas das catástrofes dos incêndios.
Ainda ontem passaram aqui uns turistas a perguntar pela estrada para verem onde morreram pessoas. Não têm vergonha
No entanto, o estudo Pinhal de Futuro ontem divulgado - uma iniciativa de rastreio e acompanhamento de saúde mental de crianças e jovens dos 6 aos 18 anos nas escolas das áreas afactadas pelos incêndios que deflagraram a 17 de Junho - revela que 7,9% das crianças e adolescentes de Pedrógão sofre de síndrome pós-traumático. 
A coordenadora do estudo, Cristina Canavarro, explica que, dos 139 jovens acompanhados, o maior grupo de casos de stress pós-traumático encontra-se do segundo ao terceiro ciclo, ou seja, dos 10 aos 14 anos. 
Estas crianças apresentam “maior dificuldade de concentração” ou “alguma sintomatologia depressiva” e “ficam com uma espécie de filme mau, que é este dos incêndios, com o medo a ele associado”.

O sol ajuda, o fogo não

A ajudar a retomar essas rotinas – que fazem parte do modelo de Avilés seguido por estas psiquiatras – esteve o longo Verão do ano passado. 
Pode parecer um contra-senso, mas as voltas da saúde mental não se coadunam com aparentes realidades. 
“Tivemos dias soalheiros, com temperatura agradável até Dezembro, o que penso que foi protector, porque as pessoas conseguiam ir organizando as coisas”, diz Célia Franco. 
“É sempre bom ter sol em termos das emoções e da saúde mental. 
Foi uma mais-valia no ano passado”, acrescenta a colega psiquiatra.

O tempo muito quente pode, no entanto, reavivar memórias e trazer ao de cima traumas que estavam debaixo do tapete. 
“A sirene, qualquer fumo, as pessoas ficam em alerta máximo. 
Isso arrasta atrás de si as emoções que tiveram há um ano. 
Se a situação evoluir num contexto de normalidade, esta vulnerabilidade começa a apaziguar-se”, diz a médica de Pedrógão. 
A colega de profissão de Oliveira do Hospital sintetiza: “Sinto que as pessoas têm medo do fogo e muitas estão a hiper-reagir a qualquer fogueirinha ou situação que implique fogo. Estão fragilizadas.”
























Nádia Piazza: “Havia pessoas que iam às reuniões de óculos de sol, não abriam a boca. Na segunda reunião tinham um colapso emocional. Cada vez que fazíamos um encontro era como se fosse uma terapia de alcoólicos anónimos, alguém contava a sua história”

A fragilidade manifesta-se de muitas maneiras – nas crianças com a desatenção às aulas ou em reacções mais bruscas, nos adultos com mudanças de atitude. 
“Nós sentimos que estamos mais desatentos, com flashes. 
Aqui há dois tipos de pessoas, as que viram e as que imaginam. 
Não se pode ver um fumo ao longe que se recorda tudo”, diz Nádia Piazza.

José Carlos Santos é um dos que viveram muito de perto os incêndios e que sobrevive com marcas na pele que não o deixam esquecer. 
É um dos cinco feridos graves de Pedrógão Grande, que esteve internado em Coimbra em coma e que passou os últimos meses do ano numa cama nos cuidados continuados na Santa Casa de Pedrógão Grande. 
Foi aí que recebeu acompanhamento psicológico mais frequente, pago pelos seguros, que o tem ajudado. 
“Na televisão só passava fogos. 
Consigo passar ao lado sem me preocupar com isso. 
Agora reviver… tenho de ir falando. 
Mas esquecer não esqueço. 
Vou ficar com as marcas. 
Falando é que vamos ultrapassando as coisas”, diz.

Esta insistência no assunto foi difícil para aquelas gentes. 
“Este discurso prolongado de quem tem a culpa não ajuda as pessoas. 
É importante que se apurem responsabilidades, mas que não se fale nisso todos os dias”, diz o professor Leuschner.

E, para piorar, aconteceu a vaga de incêndios de 15 de Outubro.

“Foi péssimo. 
As pessoas caíram de novo em si. 
O não dormir, o estar sempre alerta, o acordar de madrugada”, sintetiza Nádia Piazza.

Mais do que as palavras, foram alguns actos ou falta deles que serviam de gatilho para sentimentos mais dolorosos. 
Além dos incêndios de Outubro, a própria situação nos concelhos do incêndio de Junho arrastou-se mais do que deveria. 
Em Pedrógão Grande, por exemplo, as placas de sinalética nas estradas e aldeias ficaram queimadas durante 11 meses, foram mudadas no final de Maio. 
E mesmo antes, muito antes, logo no rescaldo daquela noite, houve muito que contribuiu para a dificuldade em ultrapassar o trauma. 
“Houve carros que estiveram aqui [Nodeirinho] um mês”; foi “uma semana inteira de funerais”.

João Viola: “Nenhum de nós sabia se o que estava a acontecer era real ou um pesadelo.”

liliana.valente@público.pt