ANÁLISE
História e Holocausto — Estudar o passado, conhecer os assassinos
IRENE FLUNSER PIMENTEL
14 de Janeiro de 2018, 7:11
Entre os anos 1940 e 60, os estudos sobre o Holocausto caracterizaram-se pela demonização e psicopatologização dos envolvidos. Uma corrente historiográfica mais recente, inaugurada por Hannah Arendt e Raul Hilberg, tem centrado a investigação nos carrascos e nos seus motivos. Uma análise que põe a descoberto o grupo de perpetradores enquanto burocratas e assassinos de secretária.
Aproximamo-nos de 27 de Janeiro, Dia Internacional da Memória do Holocausto ou da Shoah.
Foi escolhido, em 2014, por ter sido nesse dia, em 1945, que o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau (Polónia) foi libertado pelo Exército Vermelho soviético.
Como se sabe, a historiografia sobre a Shoah tem sido muito abundante, sendo abordadas, para explicar esse terrível acontecimento, questões como a do anti-semitismo e da eugenia, das etapas que levaram ao Holocausto, da resistência — ou falta dela — ao nacional-socialismo, bem como da singularidade desse terrível evento relativamente a outras atrocidades ou o facto de ser comparável com estas.
Aproveito a proximidade da data para referir uma abordagem que tem sido central ultimamente quando se trata do tema e que pode servir de exemplo à análise sobre qualquer ditadura, incluindo a portuguesa.
Trata-se dos estudos sobre os carrascos e os seus motivos, que constituem já um subtema de estudo com o nome em alemão de Täterforschung (investigação sobre os perpetradores), não só na historiografia, mas também na antropologia, psicologia, ciências políticas, direito e até na ficção.
É que torturadores e criminosos de massa não nasceram assim, tornaram-se perpetradores, como diz Françoise Sironi, repegando uma expressão de Simone de Beauvoir sobre as mulheres.
O criminoso Reinhard Heydrich, braço direito SS de Heinrich Himmler, aderiu tarde ao partido nacional-socialista, e para arranjar um emprego, pois não foi aceite na Marinha de Guerra.
De um modo geral, os estudos sobre o Holocausto e os perpetradores caracterizaram-se, entre os anos 1940 a 60, pela demonização e psicopatologização dos envolvidos.
Os julgamentos do pós-II Guerra, a partir do de Nuremberga, nomeadamente o dos Einsatzgruppen, em 1958, e sobretudo o de Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961, bem como, depois, o de Auschwitz, em Frankfurt, deram a conhecer os principais criminosos, proporcionando a publicação de sólidas análises sobre os motivos, estruturas e métodos dos líderes do regime nacional-socialista.
A sua forma comum de defesa assumida foi em geral a de que “apenas” eram executantes que teriam obedecido a ordens superiores.
A partir de 1961, na senda de Hannah Arendt (1906-1975) e Raul Hilberg (1926-2007), estabeleceu-se uma segunda fase na investigação, que interpretou o grupo de perpetradores enquanto burocratas e assassinos de secretária.
Para Hannah Arendt, “o mal radical” (depois qualificado de “banal”) é “obra da liberdade dos homens vulgares”, assinalando a filósofa que “os autores do mal não têm uma alteridade absolutamente diferente” da generalidade dos seres humanos. Arendt foi muito criticada, e também por Hilberg.
Em The Destruction of the European Jews (1961), interpretou a Shoah como um processo que funcionou em etapas sucessivas, levadas a cabo por uma multitude de decisores no seio de uma vasta aparelhagem burocrática, através de um processo desumanizante que não foi travado por qualquer ética, moral ou religião.
O historiador Raul Hilberg tinha sido influenciado, por seu turno, por Franz Neumann (1900-1954) que, em Behemoth, de 1942, atribuiu ao regime nazi a dupla característica de surgir como um poder monolítico submetido a um chefe absoluto, mas que, nos bastidores, resultava da lei da selva partilhada por quatro poderes rivais e universos semiautónomos: a burocracia estatal; o Exército; a grande indústria; o partido nazi.
O poder de Hitler residia na sanção que dava aos compromissos passados entre as forças que se digladiavam entre si, fora do círculo dos projectores.
Hannah Arendt
Três caminhos
Na abordagem historiográfica da Shoah, uma preocupação central passou a ser a de descobrir os motivos dos carrascos, desenvolvendo-se, até aos anos 90 do século XX, três principais teorias que contribuem para a explicação do comportamento dos perpetradores: as narrativas intencionalistas, as estruturalistas e as situacionistas.
Os chamados “intencionalistas” viram no extermínio a aplicação de um programa predeterminado e metodicamente planeado imposto de cima para baixo, derivando da vontade anti-semita de Hitler e da sua iniciativa individual, mas, muitos historiadores, apresentaram opiniões mais matizadas.
Já os “funcionalistas”, retomando a tese de Neumann, nos anos 70, tenderam a analisar o Holocausto enquanto crime em massa “mecanizado” por um “aparelho industrializado de genocídio”.
Para Martin Broszat (1926-1989), o Estado nazi foi uma “policracia” pluridimensional, na qual a autoridade de Hitler constituía a garantia suprema da coesão do sistema.
Por seu turno, Hans Mommsen (1930-2015), autor do conceito de “radicalização cumulativa” para descrever os diversos estádios que levaram ao Holocausto, reconheceu sobretudo o papel crucial de cumplicidade das elites alemãs com o regime.
Ambos puseram em causa a ideia de que a evolução do Terceiro Reich resultaria da aplicação de um plano pré-estabelecido, há muito anunciado no Mein Kampf, dando centralidade à análise do sistema caótico nazi.
Prendendo-se com uma crítica do historicismo, desencadeou-se, nos anos 1980, no meio intelectual da RFA, a chamada historikerstreit (“querela dos historiadores”).
Originada por uma ideia controversa do historiador alemão Ernst Nolte (1923-2016), segundo o qual o extermínio dos judeus deveria ser visto como uma forma de reacção aos crimes estalinistas, a contestação surgiu através o filósofo Jürgen Habermas, que, num artigo do jornal Zeit (11 de Julho, 1986), discutiu o estatuto do nazismo na memória colectiva alemã e a centralidade e singularidade do genocídio dos judeus, transformando a reavaliação do nazismo numa questão política e nacional.
Os “funcionalistas” foram também criticados de historicismo e de relativizarem o quadro político, ideológico e moral específico, bem como substituírem a condenação moral do nazismo pela empatia com o objecto de estudo (Saul Friedländer).
As abordagens intencionalistas e funcionalistas foram depois matizadas através de sínteses com os aspectos positivos de ambos os lados.
O historiador alemão Norbert Frei assinalou a importância do Führer como suporte carismático do poder e de arbitragem de conflitos, assente numa multiplicidade de centros de decisão e de conflitos.
A coerência do “estado do Führer” (Der Führerstaat. Nationalsozialistische Herrschaft 1933-1945, editado em 1987) residiria na preeminência de um chefe supremo, que, ao mesmo tempo, soube responder à necessidade de integração social dos alemães, conseguindo obter a colaboração de pessoas vulgares que cooperaram no reforço do anti-semitismo e das medidas raciais.
Ian Kershaw, autor na segunda metade dos anos 1980 de obras sobre a opinião pública no III Reich e sobre Hitler, escreveria uma biografia monumental deste último em dois tomos: Hitler, 1889-1936: Hubris, publicado em 1998; e Hitler, 1936-1945: Nemesis, publicado em 2000.
Ao apresentar o paradoxo de este não estar na origem de tudo mas ter sido indispensável, explicou o poder de Hitler pelo seu carisma político, concluindo que este resultou na colaboração de todos aqueles que, na Alemanha, ocuparam uma posição de influência, cujo objectivo foi servir o Führer, esforçando-se por adivinhar e pôr em prática os seus desejos.
Os estudos actuais não colocam a agência do Holocausto nos comandos centrais da estrutura (Hitler e Himmler), mas entre os perpetradores directos da periferia
É certo que, entre os sobreviventes do Holocausto, Primo Levi (1919-1987) — que só conseguiu publicar o seu primeiro livro em 1958, depois de ter visto recusada a edição em 1947, e só mais tarde descoberto, com Se Isto é Um Homem, A Trégua, Os Que Sucumbem e os Que se Salvam —, caracterizou Auschwitz como uma fábrica invertida da morte, onde não cabiam unicamente as vítimas (“zona branca”) e os carrascos (“zona negra”), mas uma enorme “zona cinzenta” composta por uma “classe híbrida de prisioneiros-funcionários”.
Um terceiro estádio da análise historiográfica, na senda de Christopher Browning, influenciado pelo conceito de “zona cinzenta” de Levi, passou a originar novas representações dos perpetradores, vistos como “homens vulgares”.
No seu livro de 1992, Ordinary Men, Reserve police battalion 101 and the final solution in Poland, Browning revelou criminosos nazis, feitos do mesmo tecido (humano) dos outros, cujos actos resultaram, em parte, de circunstâncias em que se operou uma passagem do normal para o patológico no seio de um sistema em que os fins justificam os meios. Browning mostrou que a maioria dos elementos do Batalhão 101, que mataram judeus na Polónia, eram técnicos amorais, cujas iniciativas “de baixo” tornaram desnecessárias a explicitação precisa das ordens “de cima”.
O autor concluiu que, no seio de qualquer colectivo social, o grupo dominante exerce uma tremenda pressão e impõe as normas morais.
Por outro lado, as noções de lealdade, dever e disciplina baniram quaisquer considerações humanas e morais do seio dos “perpetradores”.
Certo é que a investigação sobre os perpetradores passou a examinar as “circunstâncias” situacionais, paralelamente às motivações ideológicas, abordagem a partir da qual se baliza o início dos estudos sobre perpetradores numa perspectiva “situacionista”.
Contrariamente à abordagem multicausal de Browning, ao estudar o mesmo grupo (Hitler’s Willing Executioners, de 1996), Daniel Goldhagem afirmou através de uma postura essencialista que a história cultural da Alemanha foi marcada por um anti-semitismo “eliminacionista”, principal motivo de os alemães levarem a cabo a Shoah.
Na controvérsia à volta do livro de Goldhagen, com base nas mesmas fontes de Browning, este concluiu que uma combinação de factores situacionais e ideológicos concorreram para desumanizar as vítimas, transformando-os de “homens vulgares” em “executantes voluntários”.
Criminosos entre nós
A chamada “Täterforschung” desenvolveu-se de forma exponencial, a partir dos anos 90, entrando numa nova fase.
Da análise da máquina do extermínio, levada a cabo sobretudo pelos “funcionalistas”, houve um regresso ao estudo dos “actores”, através de perspectivas diversificadoras, segundo as quais “os criminosos entre nós não são só assassinos, mas parecem-se connosco”, o que aliás “lhes permite viver em anonimato”.
Seguindo alguns dos seus antecessores, os estudos actuais não colocam a agência do Holocausto nos comandos centrais da estrutura (Hitler e Himmler), mas entre os perpetradores directos da periferia.
Não os visiona, porém, como marionetas ou robôs, encarando-os, ao invés, enquanto agentes históricos que levaram a cabo o seu “trabalho letal” de forma “voluntária, espontânea e entusiástica”.
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